Extinguir o ensino jurídico: eis o antídoto perfeito
Extinguir o ensino jurídico: eis o antídoto perfeito
Por Melani Feldmann e Diander Rocha
Nada mais pernicioso a um Estado que se diz Democrático de Direito do que pretender conforto espiritual através do senso comum teórico. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, responsável pela retomada do status constitucional tupiniquim, recebe pronunciamentos nada líricos da massa social que brada: – Joguem aos leões esses mentecaptos avessos ao combate da criminalidade!
Evandro Lins e Silva, em tempos onde direito não era lecionado por meio de redes sociais, alertava sobre os malefícios da opinião pública em causas penais. Descreve a ocasião em que o célebre jurista francês Cesar Campinchi, atuando como acusador, invocou a voz das ruas em seu favor, no que foi rebatido por Vicent Moro Giaterri:
Maître Campinchi vos dizia a toda hora que a opinião pública estava sentada entre vós. Expulsai-a, essa intrusa. É ela que ao pé da cruz gritava: ‘Crucificai-o’. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia aos autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É Ela enfim que desonrou a revolução francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. A opinião pública está entre vós, expulsai-a, essa intrusa… Sim, a opinião pública, esta prostituta, é quem segura o juiz pela manga.
Por sorte (?!) a Corte Suprema, desta vez, não sucumbiu à tentação de Pôncio Pilatos, mas diante dele está padecida e crucificada. A expiação dos pecados galopa através do drible legislativo, engendrado para impor hermenêutica constitucional via lei ordinária. Afinal, todos são pós-doutores na praxe jurídica e contam com amplo apoio discursivo manipulador disseminado pela legião de papagaios de pirata programados na ignorância artificial:
Vejam, Senhores do alto escalão decisório, propagadores da impunidade, a cifra caótica de 190 mil condenados que seriam soltos por força do julgamento irracional de Vossas Excelências, só reduziu para 4.895 em razão dos protestos da população. Apesar das heresias argumentativas para livrar criminosos, o número de presos diminuiu com o implemento da prisão em segunda instância. Aliás, considerem a efetividade punitiva prejudicada com o reimplemento do fator prescrição. Lembrem-se que nosso clamor possui o nobre objetivo de acabar com a corrupção do país, inexistindo qualquer consequência massacrante sobre os menos favorecidos. A alta do dólar será estagnada somente com a retomada da prisão.
Eruditos cidadãos de dupla titulação invocam falácias político-criminais dessa monta em qualquer esquina. Sim! Jornalistas, atores, médicos, engenheiros, atletas e tantos outros, sequer necessitam trajar alguma toga para se dizerem juristas, e o mais grave de tudo é que opinam como se fossem. Causa estranheza, em contrapartida, sob a justificativa de não possuir conhecimento técnico no assunto, a negativa do dentista em ceder seu lugar na cadeira para um advogado realizar tratamento de canal.
A (des)informação repercutida através de dados fictícios sobre uma realidade imaginária gera efeitos drásticos na práxis. O cenário oculto na cortina de fumaça é alarmante: no ano de 2016 – marco permissivo da execução provisória da pena – o Brasil teve recorde de homicídios, 61.283 mortes violentas, crescimento de 4% em relação ao ano anterior, desprestigiando a lenda urbana de prevenção geral. Curiosamente, a taxa de prescrição de processos no STF em 2016 chegou a 18,8%, maior registrada em oito anos. Já a média de tramitação nos processos originários (por prerrogativa de foro), no mesmo período, é de cinco anos e meio, culminando em expressivos índices prescricionais (37,7% dos inquéritos e 68,3% das ações penais). Para completar a celeuma retórica, temos um índice de reversibilidade nas decisões do STJ e STF apontando 46%, ou seja, mutatis mutandis, quase metade das pessoas privadas da liberdade por decisão colegiada foram injustiçadas.
Esfacela-se, aí, o álibi de combate à impunidade e à corrupção, eis que, ao violar a garantia constitucional da presunção de inocência, no trágico 2016, o Tribunal Cidadão se beneficiou da própria torpeza, incutindo no povo crenças míticas de efetividade jurisdicional para legitimar a (de)mora da marcha processual. A questão é que o Poder Judiciário, ao rogar para si um slogan salvacionista, comete estelionato coletivo, extrapolando seus limites de atuação para satisfazer quadros mentais paranóicos.
Toda essa balbúrdia se materializa através da deletéria popularização da pragmática jurídica, travestindo-se a serenidade da razão em bestialidade imediatista. Em um país regido sob o manto democrático de direito não existe espaço de representação para o “sentimento de justiça” ou para a “vontade do povo”. A conquista histórica da cidadania em face dos regimes despóticos requer estrita observância aos primados constitucionais e legislativos ordinários, protegendo direitos e garantias dos indivíduos contra o abuso do próprio Estado, ainda que isso signifique peregrinar contra majoritariamente.
O golpe de cena, então, fica por conta dos representantes do povo: viva o Parlamento! Imiscuíram-se nas capas heroicas para salvar a pátria: se o texto constitucional não os satisfaz, modificá-lo-ão, simples assim. Constrangimento epistemológico nenhum parece abalar o efeito alucinógeno psicotrópico do engodo argumentativo.
Será possível que o niilismo triunfou? Deus alterou as regras do regimento interno do purgatório, todo cidadão de bem está autorizado a vestir sua armadura justiceira para marchar rumo à retomada do bom-senso e da moral, os tribunais deverão se render ao exorcismo ou serão submetidos aos grilhões ideológicos sociais.
É inconcebível que exista ciência jurídica nesses termos, invoquemos o morticínio do ensino, transmitir conhecimento técnico para quê? Há muito que o constitucionalista (o que é isso?!) Lenio Streck adverte sobre o perigo de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, precipuamente com autoridade de (pseudo)especialista. Rasguem, ateiem fogo nos diplomas fakes angariados em montagens baratas feitas no paint, falar sobre dogmática jurídica, direito penal e processual penal requer, no mínimo, responsabilidade.
Conversa de bar como tal deve ser tratada. O jogo possui regras preestabelecidas no anseio de assegurar integridade aos participantes e, portanto, devem ser respeitadas. A Constituição Federal não foi tirada da cartola para beneficiar personalidades, se impõe contra tudo e para todos. Em qualquer condição distinta: três para trás, entreguem os tacos!
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