Fábrica: a indiferença temperada a ferro e fogo
Fábrica: a indiferença temperada a ferro e fogo
Fábrica é uma composição de Renato Russo, lançada no álbum “Dois”, da banda Legião Urbana, em 1986.
E não se trata apenas de mais uma bela canção, assim como a maioria das interpretações da banda; mas se refere a algo maior.
É importante entender as tensões que existiam e pressionavam a sociedade brasileira daquela época, alguns tentando confirmar sua posição e seu status, e muitos buscando por sobrevivência em meio ao turbilhão de obstáculos que se faziam presentes.
A nova república, o plano cruzado, as eleições e o término da ditadura eram mudanças necessárias, que acabam causando uma transição em determinados segmentos sociais, da mesma forma que desfraldam um novo período de lutas e protestos.
Com uma maior liberdade anunciada por uma vindoura carta de direitos, que atingiu seu ápice com a promulgação da Constituição, o momento era de reformas e invocar a atenção para os menos favorecidos e esquecidos nos chãos das fábricas insalubres do “velho mundo” ao “novo” que se abria a frente.
Para isso, as antigas alianças entre operários e suas corporações forjadas em seus ânimos de combate tomaram um fôlego ainda mais encorajador; o momento era de mudança.
Ocorre que essa pseudolibertação não pode jamais se transformar em uma alienação constante. Para tanto, a união dos trabalhadores que peleavam por melhorias em seus postos de serviços se perfaziam em prol de toda uma nação: não deixar a libertação que se objeta a frente se transformar em conformismo e em alienação.
A mudança então, deveria vir, comedida pelos mais sôfregos, movida pela impaciência causada pela agonia, que agora se imaginava lá bem longe. A partir da mudança, caberia ao tempo revelar que sem luta ou entrega à causa operária por salubres condições, nada de fato se alteraria.
A relação de poder é evidenciada na música quando o mais forte, que “escraviza quem não tem chance”, tem o poder de guardar os portões da fábrica. Saber “de onde vem a indiferença temperada a ferro e fogo” significa determinar toda a condição que se estabelece a partir de poderes que surgem com a detenção de capital, realizada pelos mais abastados empresários.
O que se segue, em épocas de um crescente liberalismo, é a proteção de um sistema de mais valia, no qual a força de produção braçal equivale a um mero componente de um método baseado na obtenção do lucro, custe o que custar.
As reivindicações por justiça (“quero justiça, quero trabalhar em paz, quero um trabalho honesto em vez de escravidão”) soam contra o poder burguês que ocupa o topo da pirâmide econômica, não observando os dissabores que enfrenta o proletariado.
A busca pelo lucro beira a ganância e extrapola princípios básicos como a saúde e a preocupação com o outro, que perde sua energia vital nas insalubres máquinas que sustentam a indústria, é inexistente.
Nesse sentido, a falta de questionamento perante ao aflitivo tormento imposto à natureza, usada como um instrumento a mais para a obtenção de capital, leva seus rastros aos já fadados à penúria nas fábricas, cujas vistas se cansam perante ao ar cinzento causado pelas chaminés que constantemente alimentam (“O céu já foi azul, mas agora é cinza, o que era verde aqui, já não existe mais”.).
Em outra concepção, o penar nas doentias condições de labor oferecidas pelas fábricas deixa a vista cansada a ponto de não enxergar um futuro promissor a frente, ou de ao menos, idealizar alguma salvação (“…um trabalho honesto em vez de escravidão”.).
Esse conceito de luta de classes em Fábrica significa ainda o embrião de todo pensamento marxista, pois aqui há o pedido de socorro do empregado de chão de fábrica, um apelo por dignidade que supera sua conduta inerte e passiva de outrora.
Tem-se, ao final de um período militar e na aurora da nova república, a súplica do moribundo, que se prostra como um manifesto de dor e raiva, mas ainda, um hino de esperança para o porvir.
Sem muita esperança em mudanças pacíficas, (“…de tanto brincar com fogo, que venha o fogo então”) a luta do proletariado inverte a questão, entendendo que sem ele não há lucro, ao menos naqueles momentos de tensão e de clamor por direitos.
Tais liberdades e direitos ainda levaram (e levam ainda, pois a luta é diária) um longo tempo para que viessem (e venham) a se estabelecer na sociedade brasileira. Mas ainda há um longo caminho pela frente, quando a escravidão não parece ser coisa de um passado tão distante assim, mas se ergue na sociedade hodierna como um edema que precisa ser extirpado, em pleno século XXI.
Fábrica /Legião Urbana / Letra de Renato Russo:
Nosso dia vai chegar, teremos nossa vez, não é pedir demais; quero justiça, quero trabalhar em paz, não é muito o que lhe peço: Eu quero um trabalho honesto em vez de escravidão. Deve haver algum lugar onde o mais forte não consegue escravizar quem não tem chance. De onde vem a indiferença temperada a ferro e fogo? Quem guarda os portões da fábrica? O céu já foi azul, mas agora é cinza; o que era verde aqui já não existe mais. Quem me dera acreditar que não acontece nada, de tanto brincar com fogo que venha o fogo então. Esse ar deixou minha vista cansada; nada demais.
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