Fábrica de loucos
Por Diorgeres de Assis Victorio
Eu estava trabalhando junto a Raio II como via de regra, afinal de contas eu era zelador daquele Raio (pavilhão). Já fazia tanto tempo que eu era zelador daquele local, o mais problemático e temido da cadeia toda, que eu já me sentia como parte daquela população carcerária. Já tinha absorvidos os costumes daquele lugar, as gírias, até os presos me diziam que eu “estava tirando cadeia que nem eles”.
Via presos indo em liberdade e posteriormente retornando como reincidentes. Eles me diziam: “Mestre o senhor ainda está como zelador nesse lugar? Não arrumaram uma gaiadinha?” (lugar tranquilo, também utilizam essa palavra para se referir a cela, um lugar para viver, para tirar a cadeia de “saco amarrado”). Eu sempre dizia que eu ainda estava na cota de “ficar no veneno” e que era normal “pagarem esse veneno na cadeia”, e que eu ainda não tinha visto nem vinte mortes na cadeia e que a cota era vinte mortes, e como eles mesmo podem ver, não é só o preso que sofrem nesse lugar. Os presos davam risadas e me diziam: “Verdade mestrão. É lugar!”.
Naquele dia vi que um preso retornava de “Franco da Rocha”, lá existia um “hospital de custódia e tratamento psiquiátrico”. Estava em “moda” juízes determinarem muitos exames criminológicos, mas as Unidades não tinham profissionais para atender essa grande demanda, inclusive atualmente é raro existir médicos nas Unidades, no máximo há enfermeiros. Nisso sempre que era determinado para os presos que eles fizessem o exame criminológico eles eram levados à Franco da Rocha em São Paulo. Ele veio até mim, notei que ele estava “meio estranho”, eu o conhecia há anos e até o andar do mesmo estava diferente.
Foi aí que ele me entregou um “pipa” (bilhete) e foi embora, eis o teor do mesmo:
“- Mestre eu cheguei aqui em Franco, de manhã, com a promessa de que voltaríamos no mesmo dia, por isso não levei nada. Nisso foi nos dado (sic) a notícia de que teríamos que permanecer por 45 dias. No dia seguinte chegaram mais quatro presos do Potim, para os mesmos exames que nós. Portanto estávamos em seis e já nos informaram que não é 45 dias e sim, 60!
Nos deram um colchão, uma manta, um lençol, uma toalha, duas cuécas (sic) e material para higiêne pessoal. Nos colocaram em uma cela fria de um corredor estreito com celas dos dois lados. Do nosso lado são três celas, dois em cada cela, pois estávamos em seis. Em nossa frente são 4 celas com 4 ou 5 loucos em cada céla (sic). É um local isolado de tudo e os funcionários entram duas vezes durante o dia e uma vez à noite para distribuir medicamentos. O almoço é distribuído às 11:30 hs e o jantar às 15:30 hs, com uma canéquinha (sic) de café gelado feito de manhã. A comida é horrível, comemos umas colheradas, só o suficiênte pra não morrer de fome (nunca mais reclamo da comida dessa cadeia aí). Emagreci 4 quilos. Nunca consegui dormir mais de 3 horas seguidas, nem de dia, nem de noite, pois somos obrigados a tentar durmir (sic) constantemente para suprir a necessidade do sono.
Por que não dormimos?
Porque aqui a gritaria é uma constante: choros, quebra-quebra, balançar violento das grade (sic) (porta das celas), xingamentos, desmaios e toda espécie de barulhos. Quando não é (sic) os loucos, são os funcionários na hora do remédio que entram em 3 ou 4, todos batendo e gritando: olha o remédio! Acordem! (e batem o chavão nas grades). Acordamos sobressaltados. Os loucos acordam com dificuldade porque normalmente já estão dopados.
Depois dos gritos vem (sic) os falatórios e uma gritaria pedindo fumo, porque eles preferem ficar sem comida, do que sem fumo. E a casa distribui quilos de fumo por dia. Esse é o tratamento: remédio e fumo. E eles enrolam o fumo em folhas de bíblia e até em papel higienico (sic). Um dos nossos sempre tenta apaziguar os gritos, mas não tem jeito. Quando isso é durante a noite, as horas passam, vem o dia, em seguida a tróca (sic) de plantão, e os “boieros” gritando: Olha o café! Depois vem o funcionário gritando: Olha o Banho! Hoje, após a oração, o meu companheiro gritou para a cela mais ao lado: – E você Sanfonias, não tem família? (Sanfonias tem uns 30 anos e respondeu:) – Eu nasci em 1922, com o nome de Blucy (sic) Lee, fui perseguido pela quadrilha de Charles Bronson (sic) era uns 300. Fui na (sic) delegacia da Barra funda e pedi para o delegado: Tira esses caras do meu pé! Sabe o que ele respondeu? – Se vira cara! – Então, peqguei meu kimomo (sic) e minha espada, pulei umas três montanhas e matei todos eles. Antes eu já tinha sido Jacó, depois fui Bluc (sic) Willians e morri, nasci, tornei a morrer novamente e quando acordei, estava aqui dentro.
Ouvi umas passagens da vida de um “paciente” que está contando em vos (sic) alta para todos ouvir (sic), sobre sua preferencia (sic) sexual e uma experiência com um negão. Eu gostaria de contar essa, só pela hilariedade dos fatos, mas devido as obcenidades (sic) e o fato em si, prefiro não contar, para não parecer desrespeitoso.
Na outra cela, um gordão de 21 anos de idade, com uma loucura que o deixa como uma criança (pra mimk é o Erê), gritou na hora do remédio: – Funcionário! Funcionário! E o funcionário foi até ele: – O que foi? O gordão tirou um braço para fora e disse mancinho (sic): – Deixa eu te fazer carinho… – Sai pra lá – ralhou o funcionário – Que carinho que nada, ainda por cima, todo mijado! Os outros funcionários caíram na risada.
O senhor é ressucitado? – Perguntou o gordão para o funcionário.
– É claro que não! Ressussitado (sic) foi Jesus!
Então vamos comigo para o caixão!
– Sai pra lá, desconjuro! (e saiu se benzendo).
Um deles, na cela em frente, acordou gritando e o outro lhe perguntou o que era ele respondeu: – Estava eu indo por uma rua…vi uma festa, entrei, e vi Jesus Cristo dançando Hap (Rép). Eu fui dançar também e cai num buracão.
Na outra cela, no meio do dia, tudo claro o outro grita com desespero: – Funcionários! Funcionário! (o funcionário veio: – O que foi? – Que fazer o favor de acender a luz da cela. A luz se acende do lado de fora da cela). O funcionário acendeu, mas ralhou, porque não faz diferença nenhuma por ser luz fraca: – Por que você quer luz? Resposta: – É porque não tenho nada pra fazer e queria ficar olhando a luz.
Outro da cela começou a gritar: – Eu mato! Eu não me responsabilizo pelos meus atos! Dessa vez, se eu subir, eu mato! Perguntou o funcionário: – Mas afinal de contas, quem é que você vai matar? Ele olhou bem nos olhos do funcionário e disse: – Jesus! Se eu subir eu mato Jesus!
O outro ajoelhou no chão, levantou os braços e: – Senhor, tira-me daqui! Me tira daqui senhor! Abre te (sic) Cézamo! Abre te (sic) Cézamo!
Na cela em frente a nossa tem um que cai com convulsões e eu ou o companheiro tem que ficar gritando: – Acode ele! Vira ele de lado! Pegue uma toalha, limpa a boca dele! Segure a cabeça dele! Daqui a pouco uma briga na outra cela e um dos nóssos(sic) já começa a apaziguar e a zorra é total. Eles ficam impregnados, babam fazem xixi na cama, jogam as roupas sujas no corredor e ficam gritando para trazerem roupas secas, o que raramente acontece. Jogam prato de comida no corredor, usam o prato como cinzeiro os pratos são todos queimados de fogo dos cigarros e sabe-se lá o que mais fazem com os pratos e nós somos obrigados a comer nesses mesmos pratos. Na terça feira (sic) o meu companheiro pediu um remédio para dor de cabeça. O funcionário lhe deu um comprimido que o derrubou por dois dias, deixando-o impregnado, boca torta, babando e com dificuldades de respirar. Já pensou se nesse dia ele fosse chamado para o exame? Com certeza não teria condições psicológicas para discernir as perguntas e seria reprovado. Será que o juiz iria saber de quem foi a culpa? Assim é a nossa vida 24 horas por dia. Dá para imaginar como está (sic) nossas cabeças? E o pior de tudo: Hoje é dia 13, faz 24 dias que estamos aqui e ninguém fala nada sobre exames. Só ontem, três dos nossos foram chamados para passar pela assistente social e ela avisou que estava saindo de férias e só daqui a 15 dias iria retornar.
Será que estão esperando a gente enlouquecer primeiro, para depois começar os exames?
Veja só o que o juiz fez com a gente. Será que eu não tenho mais direito de ser uma pessoa normal?
Eu li muitas vezes essa carta, uma carta de desabafo. Entendi que ele escrevia essa carta enquanto estava naquela Unidade, acho que a intenção dele era deixar uma “prova” do que estava acontecendo com o mesmo quando ele estava lá, pois acho que ele tinha certeza que não iria aguentar tudo o que estava passando e iria ficar louco naquele lugar devido a tantas “loucuras” que ele via e ouvia.
Eu sempre dizia a mim mesmo que preferia mil vezes ficar vendo presos morrendo e toda a carnificina que eu via quase toda segunda-feira do que ter que trabalhar em um hospital de custodia. Sem sombra de dúvidas aquilo destruiria muito mais o meu psicológico em comparação com a cadeia que eu trabalhava. É lamentável presenciar situações assim. Um outro dia conto outros casos de “loucuras” de presos.