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Fake news, roubo de dados privados e punição

Fake news, roubo de dados privados e punição

O documentário “Privacidade hackeada”, disponível no serviço de streaming Netflix, acompanha o julgamento da empresa Cambridge Analytica, antes sediada em Londres, por uso indevido de dados de usuários do Facebook na campanha do presidente eleito Donald Trump. O mesmo uso indevido teria ocorrido na campanha pelo Brexit.

A empresa, fechada em virtude dos escândalos e do processo movido pelo professor de mídias digitais norte-americano David Carroll, trabalhou em muitos processos eleitorais ao redor do mundo.

David, como profissional da área, começou a se questionar sobre os dados fornecidos pelos usuários, gratuitamente, às gigantes da tecnologia, como Google e Facebook. Quem é o dono desses dados? O usuário ou a empresa?

E como as empresas se utilizam desses dados? David chegou a conclusões alarmantes e começou uma espécie de investigação informal que o levou a contratar um advogado para processar a Cambridge Analytica. Como a empresa era sediada em Londres, o professor arcou com os custos do processo movido na Inglaterra e com as viagens.

O que David descobriu é que o Facebook cedeu indevidamente dados de seus usuários à Cambridge Analytica. Com base nesses dados, que continham toda a vida on line, gostos, desgostos, opiniões políticas de milhões de norte-americanos, os funcionários da Cambridge montaram um império de fake News que deu a vitória de Trump. A estratégia dos funcionários promoveu uma campanha agressiva e, em muitos aspectos, criminosa contra Hillary Clinton, com informações falsas sobre a candidata democrata.

David não questionou os aspectos eleitorais. Seu processo pedia a devolução de seus dados pela Empresa Cambridge Analytica. Mesmo com sentença favorável, David não teve seus dados de volta, de acordo com o documentário.

Em sua jornada David conheceu uma funcionária da Cambridge que teve participação fundamental nesse processo. Britanny Kaiser resolveu falar às autoridades inglesas sobre os crimes cometidos na campanha Trump e no Brexit. Além da questão do uso indevido de dados privados de milhões de usuários ao redor do mundo, a empresa foi responsável, senão por criar, mas ajudar a difundir a agressividade nas redes sociais, das quais vemos os reflexos até os dias de hoje.

Nos E.U.A. a repercussão do caso Cambridge Analytica levou Zuckerberg, o CEO da empresa, a depor no Senado norte-americano. A empresa Facebook recebeu como pena uma multa milionária.

Muito embora David e Britanny possam se considerar vitoriosos em sua jornada de Dom Quixote contra empresários poderosos, o caso Facebook/ Cambridge é apenas uma ponta do iceberg no poder inacreditável que as gigantes de tecnologia possuem. Ainda não existe em nenhum país uma legislação eficiente de controle do poder dessas gigantes de tecnologia, as empresas mais milionárias e poderosas do mundo moderno.

A PL 2630/2020, chamada de Lei brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, foi recentemente aprovada no Senado brasileiro. Como em tudo neste momento sensível, tem muita gente contra e muita gente a favor.

Os conceitos trazidos pela Lei são importantes:

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, considera-se:

I – provedor de aplicação: pessoa física ou jurídica responsável por aplicações de internet, definidas nos termos do art. 5º, VII da Lei nº 12.965, de 2014;

II – desinformação: conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia.

III – conta: qualquer acesso à aplicação de internet concedido a indivíduos ou grupos e que permita a publicação de conteúdo;

IV – conta inautêntica: conta criada ou usada com o propósito de disseminar desinformação ou assumir identidade de terceira pessoa para enganar o público;

V – disseminadores artificiais: qualquer programa de computador ou tecnologia empregada para simular, substituir ou facilitar atividades de humanos na disseminação de conteúdo em aplicações de internet;

VI – rede de disseminação artificial: conjunto de disseminadores artificiais cuja atividade é coordenada e articulada por pessoa ou grupo de pessoas, conta individual, governo ou empresa com fim de impactar de forma artificial a distribuição de conteúdo com o objetivo de obter ganhos financeiros e ou políticos;

VII – conteúdo: dados ou informações, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento em sentido amplo, contidos em qualquer meio, suporte ou formato, compartilhados em uma aplicação de internet, independentemente da forma de distribuição, publicação ou transmissão utilizada pela internet;

VIII – conteúdo patrocinado: qualquer conteúdo criado, postado, compartilhado ou oferecido como comentário por indivíduos em troca de pagamento pecuniário ou valor estimável em dinheiro;

IX – verificadores de fatos independentes: pessoa jurídica que realiza uma verificação criteriosa de fatos de acordo com os parâmetros e princípios desta Lei;

X – rede social: aplicação de internet que realiza a conexão entre si de usuários permitindo a comunicação, o compartilhamento e a disseminação de conteúdo em um mesmo sistema de informação, através de contas conectadas ou acessíveis entre si de forma articulada.

As punições trazidas pela lei são puramente administrativas:

DAS SANÇÕES

Art. 28. Sem prejuízo das demais sanções civis, criminais ou administrativas, os provedores de aplicação ficam sujeitos às seguintes penalidades a serem aplicadas pelo Poder Judiciário, assegurados o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório:

I – advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;

II – multa;

III – suspensão temporária das atividades;

IV – proibição de exercício das atividades no país.

A preocupação de alguns especialistas, mesmo favoráveis ao controle e punição de conteúdos falsos nas redes, é justamente uma definição jurídica mais precisa e menos ambígua, vaga, de que tipo de conteúdo será punido ou não. Esse é um ponto aberto a muita discussão, pois a lei poderia trabalhar nesses aspectos com mais atenção. Sem um limite claro de que tipo de conteúdo estará sujeito a punição, abusos e erros podem ocorrer.

Não obstante, o Marco Civil da internet, Lei 12.965/14, trata com muitos aspectos positivos dessa mesma temática, e foi igualmente (e erroneamente) criticado à época de sua edição. O Marco Civil da Internet também trata de punições por condutas inadequadas nas redes, nos arts. 18, 19, 29 e 21.

Embora seja uma tarefa hercúlea, os novos tempos impõe uma legislação que fiscalize com mais rigor e também rapidez os delitos cometidos através das redes sociais, seja por pessoas jurídicas ou físicas. É uma das necessidades mais urgentes dos tempos modernos.


REFERÊNCIAS

PRIVACIDADE HACKEADA. Diretores: Karim Amer, Jehane Noujaim. Roteiristas: Karim Amer, Erin Barnett e outros. Com as participações de: Brittany Kaiser, David Carroll, Paul-Olivier Dehaye. 2019.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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