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Sobre os famosos “antecedentes”: nem tudo que reluz é ouro

Sobre os famosos “antecedentes”: nem tudo que reluz é ouro

Era uma manhã qualquer de um inverno rigoroso, e um casal ingressa no escritório de um advogado, fazendo companhia a um filho de 18 anos de idade. Eles mostravam preocupação com uma situação inusitada há pouco ocorrida.

O rapaz passa a narrar que, dias antes, caminhava pela via pública, em horário noturno, quando foi abordado por policiais militares, os quais lhe solicitaram apresentasse documento de identidade.

Após consultarem o nome do rapaz, os policiais passaram a tratá-lo com indisfarçável hostilidade, submetendo-o a uma desnecessária algemação e a ele dizendo que possuía antecedentes policiais por roubo à época em que adolescente, sem falar em impropérios e xingamentos que teve de ouvir.

Preocupado, no dia seguinte ao da abordagem, o rapaz se dirige até o quartel da guarnição policial militar e, lá, obtém a informação de que em seus antecedentes constava uma ocorrência relativa a atos infracionais de roubo e dano qualificado, supostamente cometidos em uma grande cidade dos arredores da capital.

Constituído o advogado para buscar esclarecer a situação, a primeira providência por este adotada foi obter junto ao Poder Judiciário o acesso à certidão de antecedentes judiciais do mencionado rapaz. Qual não foi a surpresa, ao constatar que o rapaz figurava como processado e condenado por atos infracionais de roubo e dano qualificado.

Por alguns instantes, o advogado ficou pensando na cena quando do atendimento ao casal e ao rapaz, todos oriundos da área rural, pessoas simples e visivelmente sinceras. Ele não poderia estar enganando a todos.

O rapaz jurava jamais ter colocado os pés na cidade onde teriam acontecidos aqueles fatos. O advogado olhava a certidão de antecedentes judiciais, estava lá o registro com o número do processo e a informação da condenação, por roubo e dano qualificado, e pensava que o rapaz não poderia estar fingindo.

A segunda providência, foi obter acesso ao processo em que supostamente o adolescente fora processado e condenado em uma comarca de cidade onde ele jurava jamais ter estado.

Examinando o processo, que já se encontrava no tribunal, em grau recursal, o advogado constituído pela família constatou que a primeira notícia relativa aos fatos objetos do processo, ou seja, o boletim de ocorrência policial nominava o rapaz como um dos autores dos atos infracionais de roubo e dano qualificado.

Era incrível, estava lá o nome do rapaz, tudo conferia, filiação, data de nascimento, naturalidade, número da carteira de identidade tudo o mais. Realmente, constava o nome do rapaz como um dos protagonistas dos fatos.

O processo era bastante volumoso, o advogado prosseguiu na leitura, buscando dar atenção a todo e qualquer detalhe que pudesse esclarecer aquela situação. Lá pelas tantas, bingo, surge a chave para elucidar o mistério. Uma certidão despretensiosa, confeccionada por um policial civil, consignava que, por lapso, fora registrado o nome do rapaz como sendo um dos autores daqueles fatos, quando, em verdade, o verdadeiro autor era um outro rapaz, cujo prenome e último sobrenome eram iguais ao do primeiro.

Quer dizer, tudo não passou de um equívoco cometido no afogadilho do atendimento em um balcão de delegacia de polícia, provavelmente em uma madrugada movimentada na repartição policial.

O problema é que esse “equívoco” fez com que um rapaz fosse abordado em via pública, indevida e desnecessariamente algemado, ofendido e humilhado. Desse “equívoco”, resultou que o rapaz teve recusado seu acesso ao serviço militar, objetivo que tinha para sua jovem existência. Esse “equívoco” fez com que um rapaz interiorano, de vida simples, tivesse receio de sair às ruas e ser abordado por policiais.

E vejam que não eram meros antecedentes policiais. Eram antecedentes judiciais, com registro em certidão do Poder Judiciário, consignando que uma pessoa fora processada e condenada por roubo e dano qualificado.

E tudo não passou de um mero “equívoco”.

O Estado será chamado a arcar com a devida reparação pelo abalo sofrido por esse singelo rapaz.

Imagine-se quantos “equívocos” assim não são cometidos.

Portanto, ao se deparar com “antecedentes”, muita calma nessa hora. Nem tudo que reluz é ouro. Pode ser que sim. E pode que ser que seja apenas um “equívoco”.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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