Femicídio: o sofrimento na intimidade
Femicídio: o sofrimento na intimidade
As relações pessoais são fonte de bem-estar e confronto e, simultaneamente, podem também ser uma grande mina de sofrimento. Especificamente, nas mulheres, o contexto de vitimação em que estas mais sofrem é a intimidade.
Femicídio é um termo de crime de ódio baseado no género, amplamente definido como o assassinato de mulheres, mas as definições variam dependendo do contexto cultural. A autora feminista Diana E. H. Russell foi uma das primeiras a usar o termo e atualmente define a palavra como “a morte de mulheres por homens, porque elas são mulheres”.
Outras feministas colocam ênfase na intenção ou propósito do ato que é dirigido às mulheres especificamente porque são mulheres; outros incluem a morte de mulheres por outras mulheres. Alguns autores preferem usar o conceito de feminicídio, procurando recalcar a vitimização de mulheres e a impunidade dos agressores e ainda enfatizar o processo de vitimização secundária que muitas mulheres sofrem às mãos do sistema de justiça (Neves, 2016).
A violência doméstica constitui uma das principais causas de morte e ferimentos em mulheres em todo o mundo. Cabo Verde e Portugal não fogem à regra. Sem uma intervenção atempada, eficaz, enérgica e atual a violência doméstica pode elevar em gravidade e conduzir até ao homicídio. E que tal suicídio? Quando tal acontece, muitas vezes, ocorre um reflexo do fracasso da comunidade e da Justiça em tratar este tipo de problema e ao mesmo tempo, desempenhar um papel preventivo precoce.
Os homicídios conjugais e familiares seguem frequentemente uma história de abuso e violência. Atualmente, tanto vítimas como agressores têm contactos frequentes com inúmeros serviços (por exemplo, o sector da saúde), oferecendo muitas oportunidades de evitar situações de violência doméstica, pelo que não podemos atribuir responsabilidades apenas ao sistema de justiça. A chave para a prevenção de homicídios domésticos assenta na melhor compreensão dos padrões, indicadores antecedentes e deficiências nas respostas existentes (DGAI, 2013).
Podemos ir mais longe, até ao século XX, onde grandes estudiosos da criminologia como Lombroso, Beccaria, Hooton, Sheldon, Goddard, Kuhlman e vários outros, tentaram, de acordo com as suas possibilidades, encontrar explicações para o fenómeno criminal. Cada um, a seu tempo, deu contributos valiosos que até hoje são objetos de estudo, mas também permite-nos ter um espírito mais crítico em relação ao fenómeno criminal, com mais incidência a este o objeto de estudo que é o femicídio. De qualquer modo, pese embora, as suas teses, neste momento com o avanço da ciência já não tenham o mesmo peso, deram boas contribuições.
Em 70% dos casos de femicídio que ocorreram em 2017 em Portugal, o grupo que teve maior expressividade foi de vítimas mulheres que mantinham ou mantiveram no passado uma relação de intimidade com os femicídas. Com Cabo verde, um país lusófono, o mesmo acontece. Aliás, ambos têm uma cultura muito próxima, pelos laços históricos e pela ainda boa e estreita relação que mantêm.
Vinte por cento das vítimas foram assassinadas por descendentes em 1º ou 2º grau ou por pessoa com a qual era identificada como figura parental de referência. Desde 2004 a 2017, o Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR dá conta de a tendência de vitimização é maior nas mulheres às mãos daqueles com quem mantinham uma relação de casamento, união de facto, namoro ou outro tipo de relação de intimidade, seguido pelo grupo de ex-maridos, ex-companheiros e ex-namorados. O femicídio tem sido praticado sobretudo em mulheres com idades superiores a 36 anos. Desde 2004, o grupo etário mais vitimizado pelo femicídio é o das mulheres com mais de 50 anos, seguido das mulheres do escalão 36-50 (UMAR, 2018).
Relativamente à história de violência na relação, verificou-se que 55% das mulheres assassinadas foi vítima de violência doméstica nesta relação. A residência é o local onde a maioria dos femicídios foram praticados e que em 2017 corresponde a 80%. É seguido pela via pública em 15% dos casos e no local de trabalho em 5% (UMAR, 2018).
Em Cabo Verde, em 2018, registaram-se sete casos resultando em nove mortes, sendo sete delas, mulheres (Jacira, Melanie e Viviana) só algumas das vítimas deste fenómeno assombrador. Quando situações deste acontece há uma grande comoção social, mas depois, tudo volta ao normal e a sociedade volta a fazer o seu percurso, com exceção de algumas ínfimas instituições que vêem dando combate a este mal social e gravíssimo, tal com a Associação Cabo-verdiana de Luta Contra Violência Baseada no Género e a Elite West África Cabo Verde.
É de domínio público que em Cabo Verde, apesar de uma lei de VBG, moderna, as respostas públicas, falharam, principalmente nas casas-abrigo para as vítimas. Mas, mais do que isso, importa falar da vitimização primária, secundária e terciária, que num outro painel, poderemos explicar detalhadamente. Concomitantemente, precisamos de ter em mente as cifras negas, que nada mais é de casos de VBG, que poder escalar para femicídio, que não são relatadas, por várias causas, em que uma delas é a vergonha.
Ainda não há um justo e competente estudo sobre a matéria, mas em média as vitimas são de 20 a 30 anos e os agressores de 30 a 40 anos de idade.
No que toca às motivações para a prática do crime, tentado ou consumado, da violência doméstica e femicídio, as mais comuns são: ciúmes, sensação de perda, machismo e/ou misoginia. Dado que os contextos de vitimação anterior são identificados na maioria das situações, conclui-se que o femicídio surge no contínuo de violência como escalada da mesma.
Nas últimas décadas, a investigação científica do femicídio permite identificar importantes fatores de risco, tais como: os antecedentes criminais do agressor; a posse de armas, particularmente de fogo; a presença de psicopatologia e ideação suicida; a situação de desemprego; o abuso de substâncias; a presença de enteados; a separação ou a solicitação desta por parte da vítima; o testemunho ou vitimação na infância do agressor e o histórico de violência nas relações íntimas, incluindo as ameaças de morte ou com armas, a existência de maus-tratos na gravidez e/ou de relações sexuais forçadas ou os comportamentos de stalking do agressor (Silva, 2016).
Relativamente à punição, o estudo da UMAR (2018) indica que as penas oscilam entre os 12 e os 21 anos e meio de prisão Portugal. Em Cabo Verde, dependendo do modus operandi, pode chegar a 35 anos.
Cumpre dizer que esta luta é de todos. Precisamos debater seriamente este fenómeno e travar um combate de todos e com todos, começando com os jardins de infância e passando pelas escolas e universidades. Por outro lado, em conjunção com instituições da sociedade civil, podemos oferecer um combate paralelo ao que o estado deve dar. Acreditamos que enquanto não eliminarmos/minimizarmos as causas de desigualdade entre homens e mulheres, causas essas estruturais, não conseguiremos lutar contra este problema que é o femicídio.
REFERÊNCIAS
DGAI, Direção Geral da Administração Interna. 2013. “Análise retrospetiva de homicídios ocorridos em relações de intimidade.” In, edited by António Castanho.
Resposta, U. D. M. A. (2018). Observatório das Mulheres Assassinadas. Dados.
Neves, S. (2016). Femicídio: o fim da linha da violência de género. Ex aequo, (34), 09-12.
Silva, A. R. C. D. (2016). Stalking e femicídio: uma revisão sistemática da literatura (Doctoral dissertation, Universidade do Minho).
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