Feminicídio e fim das penas (Parte 2)
Feminicídio e fim das penas (Parte 2)
Damos continuidade à análise do feminicídio nesta semana. No texto anterior (aqui), fizemos uma abordagem geral sobre o feminicídio, explicando suas características, a tutela internacional dos direitos da mulher e a exposição da experiência de países latino-americanos sobre a tutela da condição de gênero.
Hoje, nos debruçaremos propriamente sobre a questão do fim das penas. Antes de apresentarmos os dados sobre o feminicídio no Brasil nos últimos anos, analisaremos a base dogmática da finalidade das penas no Direito Penal para compreendermos as questões levantadas sobre a as consequências geradas pela Lei 13.104/2015.
Primeiramente, podemos conceituar a pena como “sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos” (JESUS, 2014, p. 563).
Consegue-se perceber que há uma relação direta entre o conteúdo do conceito material de crime e o fim das penas. Quando se discute a finalidade das sanções criminais se está questionando, na verdade, toda a estrutura da teoria do crime, que tem como problemas a sua legitimação, fundamentação e a função da intervenção estatal na liberdade dos indivíduos (DIAS, 2012, p. 44).
A questão do fim das penas criminais não é um problema recente, mas, sim, algo que gera controvérsias há séculos. Ela envolve tanto a finalidade do Direito Penal, quanto a avaliação sobre a dignidade punitiva (merecimento criminal) dos atos humanos (PALMA, 2017, p. 49).
Tradicionalmente, 3 foram as teorias que visavam explicar a finalidade das penas: as absolutas ou retributivas; as relativas, que se dividiam em prevenção geral e especial ou individual; e as mistas ou unificadoras.
As Teorias Absolutas ou Retributivas estavam aliadas a ideia de expiação ou, como o própria nome induz, de retribuição do mal causado pelo agente. Adotavam como justificação a “compensação do mal do crime, independentemente de qualquer fim pragmático” (PALMA, 2017, p. 50).
Esta concepção de finalidade da pena teve grande desenvolvimento na Idade Média através da filosofia da responsabilidade individual ética proposta pela Igreja e, posteriormente, teve como difusores Kant e Hegel. Para Kant, o crime significava a negação de si mesmo e dos direitos dos criminosos.
Qualquer mal imerecido que causas a um outro no povo causa-lo a ti próprio; se o injurias é a ti próprio que injurias; se o roubas é a ti próprio que que roubas; se o agrides é a ti próprio que agrides; se o matas é a ti próprio que matas. Só a lei da retribuição (jus talionis), mas bem entendido, na condição de se efectuar perante a barra do tribunal (não no teu juízo privado), pode indicar de maneira precisa a qualidade e a quantidade da pena (KANT, 2004, p. 209).
Hegel, por sua vez, entendia que o crime significada a negação do Direito e que a pena era a negação da negação, funcionando, assim, como consequência lógica do crime, meio de reestabelecer a ordem jurídica (PALMA, 2017, p, 50-51).
Não obstante o oportuno ambiente para a difusão desta concepção neste período, ela se alicerça em raciocínios anteriormente propostos. Protágoras (485 a.C. – 415 a.C.) já defendia a máxima do punitur quia peccatum est. (“pune-se porque se pecou”). Na Idade Antiga, temos uma evidente correlação com o “princípio de talião”, propunha o “olho por olho, dente por dente”.
Embora a teoria seja meramente retributiva, as penas não deixavam de conter um efeito social relevante (efeitos reflexos) (“intimidação da generalidade das pessoas, de neutralização dos delinquentes, de ressocialização”), contudo, é importante frisar que, para os seguidores desta concepção de finalidade da pena, tais consequências eram irrelevantes e nem mesmo eram o objetivo da sanção criminal, que consistia meramente em na ideia de “pagamento” pelo mal causado pelo agente (DIAS, 2012, p. 45).
Uma das principais contribuições geradas por estas ideias foi a vinculação da sanção à culpa do agente, a noção de culpa ética (PALMA, 2017, p. 51). Estabelece-se, então, a afirmação de que “não pode haver pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa” (DIAS, 2012, p. 47).
São várias as críticas apresentadas a esta teoria, não obstante suas noções elementares sobreviverem ainda hoje na teoria que se adota. A mais elementar é a de que ela não pode ser considerada uma finalidade da pena, até por que este não era o seu objetivo. Na verdade, a retribuição, como se demonstrou anteriormente, não busca atribuir fins à pena, mas sim defender a sua existência independentemente de qualquer finalidade (DIAS, 2012, p. 48).
Além disso, afirma-se que esta teoria não se adequa a legitimidade, fundamentação e sentido da intervenção do Direito Penal. Primeiro porque a retribuição funciona apenas como meio para o Estado garantir a vida em comunidade. Segundo por que um Estado Democrático de Direito, que tem dentro de suas premissas a sua laicidade e a defesa do pluralismo, não pode justificar sua atuação em razão do pecado, mas sim da proteção de bens jurídicos, dentre eles os próprios bens do agente, o que impossibilita a punição sem um fim (DIAS, 2012, p. 48).
Uma pena retributiva esgota o seu sentido no mal que faz sofrer ao delinquente como compensação ou expiação do mal do crime; nesta medida é uma doutrina puramente social-negativa, que acaba por se revelar não só estranha a, mas no fundo inimiga de qualquer tentativa de socialização do delinquente e de restauração da paz jurídica da comunidade afectada pelo crime; inimiga, em suma, de qualquer actuação preventiva e, assim, da pretensão de controlo e domínio do fenómeno da criminalidade (DIAS, 2012, p. 48-49).
Pode-se afirmar como crítica, também, o fato de que a retribuição não consegue demonstrar seus pressupostos. Ela se baseia no liberum arbitrium indiferentiae (ideia de livre-arbítrio), o qual não possui comprovação científica.
Na verdade, o que se tem é a convenção jurídica de que esta liberdade de decisão existe, mas não há comprovação desta existência. De mais a mais, o livre arbítrio não consegue subsistir nos indivíduos que adquiriram tendências criminosas em razão de processos sociais como explicam algumas correntes criminológicas (ideia de interacionismo. Exemplo do labelling approach e deviance) (PALMA, 2017, p. 51).
As Teorias Relativas são, ao contrário da anterior, teorias-fins. Ela também compreende que a pena funciona como um mal gerado ao delinquente, mas afirma que este não é sua função essencial. Este mal gerado ao agente deve ter como fundamento o objetivo de prevenção ou profilaxia criminal (DIAS, 2012, p. 49). Como dito, elas se dividem entre as teorias de prevenção geral e especial ou individual.
A principal crítica elaborada a estas teorias por parte dos retribucionistas é que a aplicação de penas para fins utilitários/pragmáticos, cujo intuito é modificar a realidade social, violariam a dignidade da pessoa humana, pois trataria o ser humano como objeto em prol de uma coesão social (DIAS, 2012, p. 49).
Figueiredo Dias (2012, p. 50) questiona tal alegação. Para ele esta crítica não possui fundamento, uma vez que, se assim fosse, nenhum dos instrumentos de ação social que objetivam consequências socialmente úteis poderiam ser justificados. Continua ao afirmar que para viver em sociedade cada indivíduo precisa abrir mão de alguns direitos (ou comprimir seus limites) e a dignidade da pessoa humana não possui relação com a finalidade da pena, mas sim com a sua aplicação.
A teoria da prevenção geral, seguindo a ideia de que a pena possui uma função social de prevenção da prática de crimes, teve como um de seus expoentes Feuerbach, para quem a “pena serviria para impedir (psicologicamente) quem tivesse tendências contrárias ao Direito de se determinar por elas” (PALMA, 2017, p. 55).
Feuerbach defendia a doutrina da coação psicológica, segundo a qual:
[…] a finalidade precípua da pena residiria em criar no espírito dos potenciais criminosos um contra-motivo suficientemente forte para os afastar da prática do crime. A alma do criminoso potencial seria assim uma arena onde se digladiam as motivações conducentes ao crime e as contra-motivações derivadas do conhecimento do mal da pena, em definitivo importando que estas últimas sejam em regra suficientemente poderosas para vencer as primeiras e, deste modo, contribuir eficazmente para a prevenção (DIAS, 2012, p. 51).
Esta teoria possui uma dupla perspectiva. A primeira, denominada de prevenção geral negativa ou intimidação, consiste no reconhecimento da pena como uma forma de intimidação permitida pelo Estado (e por ele praticado) para a sociedade em razão do sofrimento infligido ao delinquente e do receio criado às demais pessoas.
A segunda, denominada de prevenção geral positiva ou de integração, propõe a pena como forma do Estado reforçar a confiança das pessoas na validade e vigência das normas. Serve, portanto, como fortalecimento do sistema.
É na perspectiva da prevenção geral que subsiste a ideia da retribuição proposta pela Teoria Retributivista, como aponta Palma (2017, p. 55):
Também é inegável que a pena preenche necessidades de retribuição, explicáveis num plano psicanalítico, cuja não observância pode pôr em perigo a paz pública. A satisfação destas necessidades produz um efeito apaziguador, constatável empiricamente, embora seja discutível se é a severidade ou sobretudo a prontidão da aplicação as penas que gera o efeito inibidor e o fortalecimento da crença na validade do Direito.
A realidade é que a teoria da prevenção geral possui ligação direta com a função do Direito Penal de tutela subsidiária de bens jurídicos, quando propõe um efeito preventivo tanto tipificação e cominação abstrata de penas, quanto na punição concreta do indivíduo (DIAS, 2012, p. 52).
É comum tentar justificar a inefetividade da função de prevenção geral das penas através dos crescentes índices de criminalidade (conhecido pelo Estado, vale se dizer). Todavia, tal argumentação não merece acolhida, uma vez que esta finalidade é acolhida pela grande maioria da população, demonstrando um real efeito preventivo geral. Se tal argumentação conseguisse provar algo, serviria apenas para constatar uma possível inefetividade da pena (de sua modalidade, seu quantum) e não de sua finalidade (DIAS, 2012, p, 52).
Como críticas a esta concepção da finalidade da pena existem duas principais. A primeira consiste no fato de que o ser humano, com base na sua dignidade, não pode servir para fins sociais. Nesta perspectiva, o interesse público na intimidação não pode justificar a aplicação de pena ao indivíduo, servindo como crítica à função preventiva geral negativa. A outra consiste na impossibilidade de relacionar a pena com a conduta individual do agente, a gravidade do fato, impedindo o reconhecimento da pena como consequência do crime (PALMA, 2017, p. 56).
Já a teoria da prevenção especial ou individual sustentam a pena como “instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes”. A preocupação, portanto, é específica de prevenção de reincidência (DIAS, 2012, p. 54).
Nesta linha, a prevenção especial propõe uma coação psicológica sobre o delinquente, que atuará como inibidor da realização de uma nova conduta criminosa. Filosoficamente esta ideia se baseia na noção de que a “virtude se aprende e se ensina”, proposta por Protágoras (PALMA, 2017, p. 56).
Assim como a prevenção geral, a especial ou individual também apresenta uma dupla perspectiva. O elemento que diferenciará a vertente que se está tratando é saber de que forma a pena poderá cumprir a função de prevenção especial.
A prevenção especial ou individual negativa ou de neutralização propõe que a pena pode servir tanto de intimidação do delinquente quanto de defesa social. Enquanto intimidação do delinquente, a pena o gera temor para que ele não repita a conduta criminosa. Para fins de defesa social, a pena atua através da segregação do indivíduo como meio de neutralização da sua “perigosidade” (DIAS, 2012, p. 54).
A prevenção especial ou individual positiva ou de socialização se sustenta na ideia de criação das condições necessárias para a (re)inserção do delinquente em sociedade, em proporcionar todos os fatores para que ele não cometa mais crimes, demonstrando-se, assim, como uma verdadeira prevenção de reincidência (DIAS, 2012, p. 55).
Embora a concepção anterior seja a mais aceita, há também quem proponha uma prevenção especial positiva através da reforma interior/moral do delinquente. A pena serviria, então, como instrumento de adesão do indivíduo aos valores que permeiam o ordenamento jurídico ao qual está submetido. Por outro lado e diferentemente desta noção, há aqueles que sustentam uma prevenção especial como forma de tratamento das tendências criminosas do delinquente, seguindo padrões médicos, clínicos. Tais pensamentos, contudo, devem ser afastados por não condizerem com os direitos de liberdade e autodeterminação dos indivíduos propostos pela Constituição (DIAS, 2012, p. 54).
As concepções de prevenção especial ou individual também não escapam de críticas. Primeiro, a prevenção especial não pode atuar como único fim da pena. Isso decorre do fato de que se não houver perigo de reincidência, alguns crimes poderiam ficar impunes, crimes graves inclusive, enquanto outros menos graves poderiam implicar na aplicação de pena. E desta análise surge outro problema: como realizar a prognose sobre delinquência futura? Além disso, destaca-se que a própria pena é criminógena e ela mesma pode influenciar na reincidência (PALMA, 2017, p. 57).
Figueiredo Dias (2012, p. 57) também entende que a prevenção especial não pode funcionar como fim exclusivo da pena, pois senão esta deveria durar todo o tempo necessário para eliminar o perigo do delinquente.
Por fim, as Teorias Mistas ou Unificadoras. A tendência da doutrina foi de conciliar as teorias absolutas e relativas. Neste intuito, as teorias mistas se subdividiram em duas: teorias em que reentra a ideia de retribuição e as teorias de prevenção integral.
As teorias em que reentra a ideia de retribuição se sustentam numa ideia de “pena retributiva no seio da qual procura dar-se realização a pontos de vista de prevenção, geral e especial” ou melhor, em uma noção de “pena preventiva através de justa retribuição”. Isto quer dizer que a pena deve funcionar como “retribuição da culpa do agente e, subsidiariamente, como instrumento de intimidação da generalidade e, na medida possível, de ressocialização do agente” (DIAS, 2012, p. 61).
Por outro lado, as teorias de prevenção integral propõem que a combinação das demais teorias absolutas e relativas somente podem ser feitas para fins de finalidade da pena se forem excluídas quaisquer vínculos com a noção de retribuição. Percebe-se, portanto, uma concreta separação da pena com o princípio da culpa nesta teoria (DIAS, 2012, p. 62).
Por fim, compreendidas as diversas teorias existentes sobre a finalidade da penas, ressalta-se que o Brasil adota uma concepção mista, como lecionam Damásio de Jesus (2014, p. 563) e Nucci (2017, p. 716-717). Retiram tal conclusão da leitura do caput do art. 59 do Código Penal:
O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. (destacamos)
Exposta a dogmática básica sobre a finalidade das penas, no próximo texto concluiremos a análise da situação específica do feminicídio em relação a finalidade da pena e sobre se tais efeitos são verificados, através da demonstração dos dados nacionais da prática desta modalidade de homicídio.
REFERÊNCIAS
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I. 2ª ed., 2ª reimp. Coimbra Editora, 2012.
JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte geral. Vol. 1., 35. Ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução e notas de José Lamego. 2004.
NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: parte geral: arts. 1º a 120 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
PALMA, Maria Fernanda. Direito Penal – Conceito material de crime, princípios e fundamentos. Teoria da Lei Penal: interpretação, aplicação no tempo, no espaço e quanto às pessoas. 2. ed. Lisboa: AAFDL, 2017.