Fiança e liberdade da pessoa pobre
Por Ingrid Bays
Para iniciar, é necessário esclarecer que a fiança criminal é uma garantia patrimonial efetuada pelo imputado e visa assegurar a eficácia da aplicação da lei penal em caso de condenação, servindo ao pagamento das despesas processuais, multa e indenização e também como fator inibidor da fuga (LOPES JR., 2016, p. 706), objetivando “compeli‐lo ao cumprimento do dever de comparecer e permanecer vinculado ao distrito da culpa” (GRECO FILHO, 2015, p. 330). Além disso, em caso de absolvição, o valor é restituído ao acusado, conforme garante o artigo 337 do Código de Processo Penal.
Existem diversas disposições legais que regram o instituto da fiança, mas o teor da coluna de hoje será sobre apenas uma delas. Conforme se denota da leitura do artigo 350 da lei processual penal, a fiança poderá ser dispensada nos casos em que os imputados não tiverem condições econômicas para suportá-la, sendo submetidos às medidas cautelares dos artigos 327 e 328 do Código de Processo Penal e, ainda, se for o caso e houver necessidade, às medidas cautelares previstas no artigo 319 do mesmo diploma legal.
Tal previsão existe para que seja evitado transformar a fiança em uma restrição à liberdade individual em razão exclusiva da capacidade econômica do acusado, estabelecendo-se, então, a probabilidade da liberdade provisória sem fiança (NUCCI, 2016, p. 804). É questão de não permitir que a hipossuficiência econômica do cidadão influencie em sua segregação cautelar (e nesse ponto cabe um inesgotável debate no âmbito criminológico, mas por ora nos ateremos só na análise processual da fiança…).
Para verificarmos como vem ocorrendo a aplicação do dispositivo na prática, vejamos a seguinte situação: a prisão em flagrante ocorreu devido ao cometimento dos crimes de furto simples (artigo 155 do Código Penal) e direção ilegal de veículo automotor (artigo 309 do Código de Trânsito Brasileiro). A autoridade policial arbitra a fiança em R$ 1.500,00 e o magistrado eleva o valor para vinte salários mínimos, com base no artigo 325, inciso I, do Código de Processo Penal. Ocorre que o acusado é pessoa extremamente pobre, que sequer teria condições de pagar o valor arbitrado pela autoridade policial. Não obstante, a própria decisão judicial reconheceu estarem ausentes os requisitos da prisão, porém manteve preso o cidadão (!). Ou seja, caros leitores, a prisão em flagrante não foi convertida em prisão preventiva, os delitos em caso de uma condenação não alcançariam uma pena superior a quatro anos nem na pior das hipóteses, podendo, se fosse o caso, ocorrer a substituição por penas restritivas de direitos. No entanto, o acusado continuou segregado, até que sobreveio decisão do Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC nº 134508/SP:
Prisão em flagrante. Furto simples (CP, art. 155, “caput”) e direção ilegal de veículo automotor (CTB, art. 309). Paciente que, por ser pobre, não tem condições de prestar fiança criminal (CPP, art. 325, § 1º, I). Manutenção, mesmo assim, de sua prisão cautelar. Ausência dos requisitos de cautelaridade. Existência, contra o paciente, de procedimentos penais em curso: Irrelevância. Presunção constitucional de inocência. Direito fundamental que assiste a qualquer pessoa. Caráter excepcional da prisão cautelar. Incongruência de manter-se cautelarmente preso alguém que, se condenado, sofrerá a execução da pena em regime aberto (CP, art. 33, § 2º, “c”), caso o magistrado sentenciante não opte por substituir a pena de prisão por penas meramente restritivas de direitos (CP, art. 44, I). A prevalência da liberdade como valor fundamental que se reveste de condição prioritária (“preferred position”) no plano das relações entre o indivíduo e o Estado. Precedentes. A clamorosa situação do sistema penitenciário brasileiro como expressão visível e perversa de um estado de coisas inconstitucional (ADPF 347-MC/DF). Concessão de liberdade provisória ao paciente. Medida cautelar deferida.
O que se observa, nesse caso, é um tratamento absolutamente injusto ao cidadão desprovido de valor econômico para pagar a fiança, fora os absurdos de reiteradas decisões absolutamente indiferentes e irresponsáveis no que diz respeito às garantias constitucionais do cidadão, que nesse caso obrigou-se a aguardar uma decisão da mais alta instância do poder judiciário para que, finalmente, pudesse recuperar a sua liberdade. Infelizmente, não podemos negar que a fiança ainda é um dos incontáveis obstáculos à liberdade do réu pobre.
REFERÊNCIAS
GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.