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Sobre a filmagem de interrogatórios policiais

Sobre a filmagem de interrogatórios policiais

Quando se fala que toda pessoa investigada ou acusada criminalmente possui direito a permanecer em silêncio, o que logo vem à mente é que o cidadão não poderá ser obrigado a prestar declarações que lhe incriminem.

Em verdade, o alcance dessa prerrogativa vai bem mais além do que simplesmente poder calar diante de uma inquirição de natureza penal. Cuida-se de verdadeira conquista civilizatória aquela que garante aos cidadãos o direito de poder manter postura passiva diante de uma investigação ou processo de índole criminal, sem que disso possa implicar conclusão negativa ao acusado.

A Constituição Federal, no artigo 5.°, inciso LXIII, assim positivou o popularmente chamado “direito ao silêncio”:

O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.

Esse preceito constitucional concentra, na cláusula do “direito ao silêncio”, a prerrogativa que assiste a todo cidadão de não ser obrigado a colaborar com investigação (policial, ministerial ou parlamentar) ou processo criminal, muito menos ser compelido a tanto, sem que dessa circunstância possa advir qualquer prejuízo à sua esfera jurídica.

Vale dizer, é uma acepção bem mais ampla do que simplesmente poder calar diante de uma autoridade estatal da persecução penal (“Nemo tenetur se detegere”).

Já o Pacto de São José da Costa Rica, internalizado no direito brasileiro por força do Decreto n.° 678/92, estabelece que toda a pessoa acusada criminalmente tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada (artigo 8.°, item 2, alínea g).

No âmbito do direito internacional, em precedente histórico (Caso Miranda vs. Arizona), a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, em 1966, rechaçou a possibilidade de utilização de interrogatório policial como meio de prova quando o ato não tenha sido precedido da comunicação ao investigado de que possui direito a permanecer em silêncio e de constituir advogado.

No entanto, não basta que exista o direito à não auto-incriminação no plano formal, se o cidadão, quando chamado a depor em investigação ou processo penal, não for previamente cientificado de que não é obrigado a prestar qualquer colaboração com a persecução penal. É indispensável que, desde o momento que a pessoa esteja à disposição de agente estatal investido em funções persecutórias, haja a formal comunicação do direito a uma atitude passiva.

Filmagem de interrogatórios policiais

Nos dias que correm no Brasil, vem se popularizando a prática espúria, abusiva e indecorosa de chamar-se pessoa suspeita da prática de crime a uma Delegacia de Polícia e submetê-la a uma espécie de “interrogatório informal”, com filmagem dissimulada do ato, para, daí, buscar-se extrair-se confissão ou informação útil à investigação.

Sinal da grave deterioração institucional que assola o país é quando a própria Polícia junta aos autos do inquérito a filmagem clandestina por ela produzida, como se fosse ato corriqueiro e coberto pela maior normalidade.

Rigorosamente, isso não é prova. E ainda que houvesse quem se animasse a denominar tal absurdo como ato de prova ou de investigação, não escaparia da classificação como um procedimento escandalosamente ilícito.

Ora, uma investigação policial e/ou ministerial (ou, ainda, no âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito) ou um processo judicial deve se desenvolver com observância da formalidade própria a esses procedimentos, impondo-se, como é de rigor, no ato de interrogatório, que só se conhece na forma como prescrita no Código de Processo Penal (artigo 6.°, inciso V, do CPP), seja o investigado/acusado formalmente cientificado de seus direitos, dentre eles, o de ficar em silêncio.

Importante, para esse fim, é fixar-se o momento a partir do qual os agentes estatais da persecução penal devem, sob pena de grave ilicitude do ato, cientificar o investigado de que possui não apenas o direito ao silêncio, mas de permanecer em postura inerte e passiva, sem qualquer prejuízo à sua defesa.

A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal assentou que a informação do direito ao silêncio deve ocorrer desde quando o indivíduo está sob custódia ou de alguma forma se encontre significativamente privado de sua liberdade de locomoção; que para que a instrução do direito ao silêncio possa cumprir com seus objetivos é necessário que ocorra o quanto antes; e que interrogatório não é só o ato formal previsto nas leis processuais, mas a oitiva, formal ou informal do acusado, ainda que fora do âmbito processual-penal (Habeas Corpus 78.708/SP).  

Em outro precedente do STF, decidiu-se ser prova evidentemente ilícita aquela que deriva da obtenção de gravação ou filmagem indevida de diálogo mantido por pessoa sob investigação penal:

(…) Gravação clandestina de “conversa informal” do indiciado com policiais. Ilicitude decorrente – quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental – de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório” sub-reptício, o qual – além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (CPP, art. 6.º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio” (Habeas Corpus 80.949/RJ).

Com efeito, cabe ao Estado, através dos órgãos incumbidos da persecução penal, investigar e responsabilizar todos quantos tenham incorrido em infrações penais, desde que o faça com estrita observância das regras constitucionais, convencionais e legais que disciplinam a matéria.

Não existe vedação a que se filme ou grave o ato de interrogatório policial. Aliás, no âmbito judicial, inclusive, a gravação de audiências, em áudio e vídeo, é prática determinada em lei. O que não se concebe é que o ato de filmar ou gravar depoimentos, interrogatórios ou quaisquer conversas em esfera de investigação policial/parlamentar ou apuração judicial não seja precedida de prévia e formal cientificação à pessoa submetida ao ato estatal.

Em um português bem claro, o que não se pode admitir é que o Estado lance mão de expedientes dissimulados e escusos, ainda que a pretexto de apurar prática de crimes.

Como dizia Montesquieu:

Até a virtude precisa de limites.

Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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