A concordância prática entre as finalidades do processo penal

A concordância prática entre as finalidades do processo penal

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, uma soma de relações humanas, enfim, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam a sua efígie e agora só valem como metal, não mais como moedas. (NIETZSCHE, 1978, p. 48).

O princípio da necessidade, resumido no brocardo nulla poena sine iudicio, é a coluna mestra na qual se estriba o conceito de processo penal: ele é o caminho necessário para que se chegue a uma pena.

O direito civil é autoaplicável, prescindindo corriqueiramente de seu correlato processual por via extrajudicial, por ter realidade concreta fora do processo civil. O mesmo, entretanto, não pode se dizer do direito penal. Este, por constituir a ultima ratio estatal contra a desinteligência de seus cidadãos, só se aplica após o transcurso de um processo previamente estabelecido, previsto em lei e norteado por direitos e garantias (Cf. LOPES Jr., 2017, p. 34).

Compreende-se, daí, que o Direito Processual Penal é um meio de limitação do poder estatal, não um instrumento de punitivismo ou vingança institucionalizada.

Recordemos que a doutrina portuguesa elege – e isso bem se adequa à nossa – como finalidades do processo penal (1) a proteção dos direitos fundamentais das pessoas, (2) a busca pela verdade real e (3) a realização da justiça.

Qualquer ponderação séria sobre as finalidades que dimanam do conceito proposto de ciência processual criminal faz saltar aos olhos os conflitos práticos que dele decorrem: como buscar a realização da justiça ou a verdade real e ainda assim proteger os direitos e garantias fundamentais do réu?

Pressupondo que o direito processual penal não é instrumento de impunidade, devemos considerar, então, ser tão urgente quanto necessário que se estabeleça um meio termo, ou melhor, uma concordância prática, entre as suas finalidades.

Os defensores da verdade real utilizam-na para justificar os meios de provas – ou de obtenção de provas – mais absurdos. Basta lembrar que a tortura tinha como pretensão atingir a verdade real (Cf. LANGBEIN, 1978, p. 7), ocultando a barbárie de seus métodos arbitrários com o manto dourado da nobreza de seus propósitos, a fim de tornar mais aceitável aquele meio de obtenção de prova.

É sob o mesmo esconderijo que se refugiam hoje as escutas telefônicas ilegais, quebras de sigilos bancários, investigações criminais sem prazo, e um largo etecetera.

De outro turno, em que pese a nossa simpatia pela ideia de verdade contingente – segundo a qual o processo penal deve elidir de seus propósitos a busca pela verdade, só atingindo-a incidentalmente e sem que isso seja sua pretensão (Cf. LOPES JR., 2017, p. 376) –, essa não nos parece ser a melhor solução para o problema proposto.

Não se pode extrair do processo penal todo e qualquer grau de veracidade das provas colhidas para que se construa o convencimento do magistrado, sob pena de torná-lo arbitrário. O processo é instrumento de reconstrução aproximativa de um fato histórico (Cf. LOPES JR., 2017, p. 341), assim, ao menos em sentido formal, é necessário que a sentença espelhe os acontecimentos fáticos que o processo se propõe a reconstruir.

Assim, nos parece, que a resposta à nossa indagação se funda em uma base mais sólida: os direitos fundamentais dos indivíduos são direitos oponíveis contra o Estado, limitando-o na sua pretensão de penar, porque têm como base a dignidade da pessoa humana.

Ainda que consideremos que a realização da justiça seja um valor constitucionalmente protegido, este, como os demais, está limitado pela dignidade da pessoa humana, por sua “inegável primazia no âmbito da arquitetura constitucional” (LOPES Jr., 2018, p. 36).

Frente à natureza da primeira das finalidades do processo penal – a proteção dos direitos fundamentais das pessoas – as demais devem ser limitadas, na amplitude dos institutos que compõem nosso arcabouço processual, para garantir a prevalência constitucional desses direitos e da função mais adequada a um processo penal no Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

ANTUNES, Maria João. Direito processual penal. Coimbra: Edições Almedina, AS, 2016.

LANGBEIN, John. Torture and plea bargaining. In: The University of Chicago Law Review, 1978.

LOPES Jr, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

LOPES Jr, Aury. Fundamentos do Processo Penal. 3. ed. São Paulo, 2017.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral: obras incompletas. São Paulo: Abril, 1978.


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