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Flagrante delito e as medidas cautelares alternativas em tempos de COVID-19

Flagrante delito e as medidas cautelares alternativas em tempos de COVID-19

Atento ao fato de o delegado de polícia ser o primeiro garantidor dos direitos fundamentais, uma vez que na situação flagrancial o conduzido já se encontra encoberto pelo manto de proteção constitucional, e, visando minimizar a problemática causada pela pandemia do COVID-19, caracterizada como “Emergência em Saúde Pública de importância Nacional” (ESPIN), se faz profícua, perante o atual cenário social, jurídico, cujos reflexos recaem no caótico sistema prisional brasileiro, realizar uma análise casuística, teórica e bibliográfica, passando por regimentos interna corporis da Polícia Judiciária no enfrentamento à pandemia.

A par desta realidade, a presente pesquisa valeu-se de ordenamento jurídico como um todo, no afã de suavizar as consequências sociais, através dos instrumentos jurídicos revelados, para justificar a aplicação das chamadas medidas cautelares alternativas à prisão, pelo delegado de polícia, como consequência da ratificação da voz de prisão em flagrante. Utilizou-se, sobretudo, de uma pesquisa de caráter bibliográfico e análise jurisprudencial.

Conforme amplamente divulgado na imprensa, estamos em um estágio de contaminação comunitária, conquanto os números de infectados progride assustadoramente. Trata-se, portanto, de uma problemática generalizada, ultrapassando questões meramente sanitárias, desaguando até mesmo na Segurança Pública. 

A título de exemplo, vários regramentos interna corporis ressaltam que os chefes dos Órgãos, Unidades e Agências de Polícia adotarão medidas que considerarem apropriadas e necessárias para a redução de aglomeração de pessoas em seu ambiente de trabalho, com atendimentos espaçados para manter o menor número de pessoas, o distanciamento, entre outras medidas.

De outra banda, o delegado de polícia, presidente do Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), possui as prerrogativas de bem direcionar o flagrante delito e a destinação do conduzido, disso a razão por tal autoridade ser taxada pelo STF como sendo o “primeiro garantidor de direitos”. 

Restando evidente que o legislador não se atentou a esta evolução do Sistema flagrancial, falando menos do que deveria, lacuna que deve ser solucionada pela operadores do direito

A Constituição Federal com toda sua principiologia calcada nos direitos fundamentais e alicerçada na dignidade da pessoa, humanizou o tratamento jurídico despendido àqueles que são alvos do Estado em seu direito de punir. Não por outro motivo, esta nova realidade, ou seja, a pandemia, deve ser sopesada pela autoridade policial, e o não fazer é negligenciar a realidade. 

Com o alastramento do COVID-19, as Polícias Judiciárias buscam “um plano emergencial aos flagranteados” –encaminhamento à Estabelecimento Prisional diverso, onde guardam a quarentena-, terminado o isolamento, o preso é encaminhado ao destino costumeiro à época do flagrante. 

Chama atenção, nesse trâmite, merecendo destaque, o inevitável contato entre policiais e presos e a iminente possibilidade de contágio: entre presos e policiais civis; entre os próprios presos (que ocupam a mesma viatura); entre presos da mesma cela; entre policiais penais e presos, e as hipóteses não findam. 

De maneira panorâmica, é de se esclarecer que cabe ao delegado de polícia, possuidor de poder discricionário, analisar o caso concreto e averiguar a ocorrência ou não de um crime, culminando em não ratificar a voz de prisão em flagrante e na liberação do indivíduo ou formalizar o auto de prisão. Não obstante, cabe também à referida autoridade policial o arbitramento da fiança liberatória aos flagranteados, quando a pena máxima em abstrato não ultrapassar 4 anos. Em perfeita correlação, vislumbra-se ainda a possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito e o acordo de não persecução penal. Poderíamos dizer então que se trata de uma categoria de crimes que não possui a privação da liberdade como resultado imediato. 

Sabidamente, grande parte do “público” da Polícia Judiciária local carece de recursos para o adimplemento ou recolhimento dos valores arbitrados a título de fiança liberatória, indo de encontro às diretrizes recomendadas pela OMS e às Resoluções da própria PCMG. 

Sem qualquer tipo de alarde, mas se pautando na prudência e nos dados revelados, enfrentaremos uma crise econômica – na modalidade recessão – sem precedentes, um desemprego generalizado, a paralisação da economia, e outros reflexos que resultarão em um óbice ainda maior à finalidade prelecionada à fiança.

Atento ao princípio da intervenção mínima, cumpre ressaltar que o Direito Penal deve ser considerado a última alternativa a ser manuseada. Utilizar-se-ão, nesse cenário, preferencialmente informações adequadas e educacionais diante condutas temerárias, as quais serão, se necessário, coibidas por medidas administrativas e cíveis. 

A Carta Magna de 1988, expõe em seu artigo 5º um rol de princípios, os quais concebem a estrutura jurídico-penal brasileira consoante os ditames de um Estado Democrático de Direito, de modo que o ponto inicial é analisar os direitos fundamentais – previstos constitucionalmente –, mais precisamente o direito à dignidade, à liberdade e á saúde.   

As alterações trazidas pela Lei 12.403/11, modificou a dicotômica raiz do Código de Processo Penal ao acrescentar outras medidas cautelares diversas à prisão, sendo elas: o comparecimento periódico, a  proibição de acesso ou frequência a determinados lugares; a proibição de manter contato com pessoa determinada; a proibição de ausentar-se da Comarca; o recolhimento domiciliar no período noturno; a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira; a internação provisória do acusado, – estas duas últimas condicionadas a requisitos previstos na própria lei -, a fiança (nas infrações que a admitem) para assegurar o comparecimento a atos do processo e a monitoração eletrônica. Por fim, no art. 320, a proibição de ausentar-se do País.

Na hipótese do delegado de polícia reconhecer a situação flagrancial, o mesmo não está mais amordaçado pela velha ideia forquilhada do “prender ou soltar”, ou seja, verificada a situação de flagrante delito, almeja-se a aplicação direta, imediata, das cautelares alternativas à prisão, além da fiança, segundo um critério de proporcionalidade entre o delito e a medida alternativa diversa, sempre de forma fundamentada, isto é, quando o arbitramento da fiança, no caso concreto, não se mostrar como medida mais apropriada e justa, é o que doutrina denomina interpretação extensiva. 

Sob o prisma dos poderes atribuídos ao delegado de polícia, que pode o mais (prisão), outorgando-se implicitamente o menos (medidas cautelares alternativas), sem o esgarçamento do princípio da legalidade, busca-se uma verdadeira sintonia do ordenamento jurídico – que clama pela segregação cautelar como ultima ratio –, considerando a proporcionalidade, a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a posição jurídica do presidente do flagrante no caso concreto.  

Como forma de se estender o amparo constitucional e o valor liberdade à persecução criminal como um todo, e não apenas à liturgia processual, com a mesma lógica explanada no neoconstitucionalismo, nos princípios da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana; principalmente na presente situação de contágio comunitário do COVID-19. 

Um enfoque moderno do inquérito policial, aponta a existência de uma missão preservadora, que é a principal, com a inibição da instauração de processo penal temerário, resguardando a liberdade do investigado e evitando custos estatais desnecessários, segundo Henrique Hoffmann. 

A Lei 12.403/11 introduziu alteração na cautelaridade pessoal do processo penal: se antes o processo penal permitia apenas a liberdade ou a prisão durante o processo, agora temos alternativas menos gravosas do que a prisão, medidas descarcerizadoras ou cautelares não prisionais, que se afiguram possíveis de serem impostas, em uma ótica de resguardo da liberdade. 

Diante disso, o art. 319 do Código de Processo Penal ampliou de forma substancial o rol de medidas cautelares pessoais diversas à prisão, prevendo o comparecimento periódico, a  proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando; proibição de manter contato com pessoa determinada; proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; recolhimento domiciliar no período noturno; suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável; fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo; monitoração eletrônica. E o art. 320 fala da proibição de ausentar-se do País.

Segundo Cristiano G. Cherem, na obra Medidas Cautelares em Face da Lei 12.403/11,

os fatos desafiam as normas e é preciso compreender que vivemos na era do pós-positivismo jurídico, em que, portanto, o Direito está em construção, à luz da Lei Maior, que irradia princípios explícitos e implícitos”. Com isso não se está negando o princípio da legalidade, essencial ao Direito Penal e ao Processo Penal, mas sim conferindo-se a devida interpretação ao mesmo à luz do “Império da Constituição. 

A concessão das medidas cautelares alternativas como consequência do reconhecimento da situação flagrancial encontra os mesmos limites impostos ao arbitramento da fiança, seja na pena máxima em abstrato, seja nas hipóteses de proibição e não cabimento da fiança (artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal).

Somado a isso, a aplicação da alternativa cautelar diretamente pelo delegado de polícia, na situação flagrancial, deve-se pautar na proporcionalidade, razoabilidade, justeza e sincronia jurídica, resguardando-se, portanto, a medida extrema (prisão) para as últimas consequências.  Evitando-se assim o contágio desnecessário entre aqueles que experimentariam um cárcere efêmero, embargando a indesejada e calamitosa entrada do vírus nos sistemas prisionais, quando o contágio daquele que poderia ser beneficiado pelas demais cautelares alternativas.  

Em um exame pormenorizado das normas vigentes que delineiam a escorreito andamento do processo penal e do inquérito policial, pode-se despossar, daí, uma relação de paralelismo. Paralelismo entre o acordo de não persecução penal, o cabimento da prisão preventiva, a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos e a possibilidade de arbitramento das cautelares alternativas, por exemplo, a fiança. Nada mais é do que a busca da simetria entre o processo penal stricto sensu e o auto de prisão em flagrante.

Este é o momento de uma sincera mudança de paradigmas de todos agentes envolvidos no momento do flagrante delito, da lavratura do APFD e nas suas consequências, construindo-se um processo penal proporcional, razoável, lógico e constitucional, desde os meandros flagranciais. Cito, nesse sentido, as palavras de Fabricio de Santis Conceição, 

[…] Portanto, não há de se negar o liame histórico e atual – existente entre o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária Brasileira, devendo tais prerrogativas funcionais de seus comandantes Juiz de Direito e Delegado de Policia Judiciária, respectivamente, retornarem à isonomia (v.g. garantias constitucionais, remuneração, prerrogativas de foto, dentre outras), a fim de que o trabalho entre as instituições se perfaça de modo satisfatório e condizente com a atual realidade do País, pois o mesmo sujeito que comete o crime, é investigado, preso e submetido a um processo pré-processual denominado “inquérito policial”, é também julgado e tem sua pena fiscalizada por um Juiz igualmente capaz moral e intelectualmente, de mesma formação jurídica da do delegado de polícia […]. 

Exemplificando, o agente embriagado é flagrado na direção de um veículo automotor. Ratifica-se a voz de prisão em flagrante. No entanto, o agente não possui condições de arcar com o ônus da fiança liberatória, sendo o mesmo encaminhado ao Presídio. Na audiência de custódia o indivíduo vem a ser liberado. Entrementes, indaga-se, qual o tamanho do risco de contaminação do vírus a extensão de sua propagação entre o custodiado e outros presos, entre o custodiado e policiais? 

Conclusão 

Em uma rápida e despretensiosa análise do dia-a-dia forense, podemos citar outras situações de mera ausência de dicção legal, o que em nada se confunde  com a ausência de lei, como por exemplo: a pena restritiva em direito convertida em cesta básica, quando a lei diz, expressamente, pena pecuniária. Cesta básica não tem nada de pecúnia. Qualquer tentativa de ofuscar o trabalho do delegado de polícia em trazer os conceitos de prisão como último recurso, na concessão das demais cautelares alternativas parece um apeguismo à ausência de uma mera dicção legal. 

 A prisão em flagrante é o momento mais ativo do delegado de polícia, segundo ensinamentos de Guilherme Nucci. Assim, melhor seria a aplicação das proibições previstas no art. 319, do CPP, a assinatura dos termos de responsabilidade e a liberação do conduzido pela própria autoridade policial, evitando o deslocamento desnecessário e a potencial disseminação do vírus. 

Indubitável que em tempos de COVID-19 a concessão das medidas cautelares alternativas pelo delegado de polícia como consequência do reconhecimento da situação flagrancial, cuja decisão se sujeita a imediato controle do Poder Judiciário, coloca em tela, efetivamente, princípios explícitos e implícitos na Constituição Federal, outrora expostos, bem como ampara e garante direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana e o direito à saúde.

Em verdade, é uma forma de se evitar a experimentação momentânea do cárcere, e o contágio efêmero e desnecessário entre novos ingressos do Sistema Prisional e os já reclusos. Do outro lado da ponta, os argumentos de perigo de contaminação e disseminação da COVID-19 dentro dos Presídios, acabam por sofrer um duro golpe. 

Em outras palavras é o “estreitamento da porta de entrada e de saída” dos Presídios brasileiros, tão somente com o uso da interpretação extensiva e da simetria entre as regras processuais de restrição de liberdade e o flagrante delito. E assim, diminuir os impactos da COVID-19 no Sistema Criminal. 


REFERÊNCIAS

BORGES, Fábio Ruz. Delegado de polícia na prisão em flagrante e medidas cautelares alternativas. Curitiba: Instituto Memória. Centro de Estudos da Contemporaneidade, 2019.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2000.

CASTRO, Henrique Hoffmann. Inquérito policial é indispensável na persecução penal. Consultor Jurídico. Dez/2015. Disponível aqui. (Acesso em abril 2020).

CHEREM, Cristiane Goulart. Medidas cautelares em face da lei 12.403/11: O novo paradigma de alternativas às prisões. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2014.

CONCEIÇÃO, Fabricio de Santis. Fiança: Atribuição do delegado de polícia sob o prisma da “função social”. Disponível aqui. (Acesso em abril 2020.).

 NUCCI, Guilherme de Souza.. Juizados Especiais Criminais Federais. São Paulo: Saraiva, 2005.

____. Leis penais e processuais penais comentadas. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SANINNI NETO, Francisco.  Inquérito Policial e prisões provisórias. São Paulo: Ideias & Letras, 2014.

SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.


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Fábio Ruz

Delegado de polícia. Professor de Direito Constitucional de cursos preparatórios para carreiras policiais. Mestre em Direito na área de concentração "Teoria do Direito e do Estado", no Programa de Estudos em Direito do Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM). Coautor da Obra "NOVOS DIREITOS, NOVOS RISCOS E CONTROLE SOCIAL", Editora Boreal. Coautor da Obra "HUMANIZAÇÃO E EXECUÇÃO PENAL, o Drama na Efetividade do Direito Penal, Editora Instituto Memória. Coautor da Obra "CONSTITUCIONALISMO, DEMOCRACIA E ESTADO DE DIREITO", Editora Projuris. Autor da Obra "DELEGADO DE POLÍCIA NA PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO E MEDIDAS CAUTELARES ALTERNATIVAS", Editora Instituto Memória.

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