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Flagrante facultativo e buscas (i)lícitas à luz do HC 470.937/SP

Flagrante facultativo e buscas (i)lícitas à luz do HC 470.937/SP

Conforme se sabe, no cotidiano das grandes metrópoles e em estabelecimentos privados de grande movimentação, faz-se necessário reforçar a segurança em prol de conceder um maior conforto aos consumidores que ali se encontram bem como para inibir a prática de pequenos delitos patrimoniais que possam ocorrer.

Por essa perspectiva, o ordenamento jurídico pátrio permite que os proprietários dos aludidos estabelecimentos disponham de firmas de segurança privada que prestam os serviços adequados para a tranquila perpetração de suas atividades cotidianas, os quais podem efetivar-se com o uso de instrumentos que possibilitem o uso progressivo da força, como cassetetes e armas de fogo.

Sendo assim, no assaz de evitar situações em que o uso da força se faça necessário, por vezes ocorrem buscas pessoais realizadas pelos referidos agentes privados, como ocorre comumente em casos de subtração de bens que integram o acervo patrimonial da empresa.

Neste contexto, caso análogo alcançou a apreciação do Superior Tribunal de Justiça que, em 04/06/2019, concedeu ordem de oficio no HC 470.937/SP para absolver paciente que havia sido condenado por tráfico ilícito de entorpecentes, em razão de ter sido encontrado dois tabletes de maconha, pesando aproximadamente 500g.

No incidente levado à apreciação da Colenda Corte, o paciente havia sofrido busca pessoal procedida por agentes de segurança da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) os quais, ao avista-lo de longe com uma mochila nas costas, teriam suspeitado que este seria um vendedor ambulante, oportunidade em que iniciaram a busca pessoal no paciente e em seus pertences, logrando êxito em localizar os mencionados entorpecentes.

Segue ementa da decisão da Corte Superior:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESCABIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS. ILICITUDE DA PROVA. REVISTA PESSOAL REALIZADA NO AGENTE POR INTEGRANTES DA SEGURANÇA PRIVADA DA COMPANHIA PAULISTA DE TRENS METROPOLITANOS – CPTM. IMPOSSIBILIDADE. WRITNÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração não deve ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF e do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Contudo, ante as alegações expostas na inicial, afigura-se razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal. Não é cabível a utilização do habeas corpus como substitutivo do meio processual adequado. 2. Discute-se nos autos a validade da revista pessoal realizada por agente de segurança privada da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos – CPTM. 3. Segundo a Constituição Federal – CF e o Código de Processo PenalCPP somente as autoridades judiciais, policiais ou seus agentes, estão autorizados a realizarem a busca domiciliar ou pessoal. 4. Habeas corpus não conhecido. Todavia, concedida a ordem, de ofício, para absolver o paciente, com fulcro no art. 386, inciso II, do CPP.

Conforme de extrai da ementa colacionada, o âmago da controvérsia girou em torno da licitude da busca pessoal realizada pelos agentes privados que, embora contratados para realizar a segurança do local, categorizam-se como agentes particulares, os quais, conforme lições administrativistas, atuam no âmbito do direito privado, exercendo tão somente poderes privados, sujeitando-se aos mesmo institutos autorizadores de uso da força que os demais cidadãos (legítima defesa, estado de necessidade, etc).

O Relator, Ministro Joel Ilan Paciornik, em sua manifestação favorável ao pleito aclarou que, conforme cristalina inteligência do Código de Processo Penal, a busca pessoal será procedida quando houver fundadas suspeitas de cometimento de ilícito, nos termos do Art.240 do diploma processualista, já consolidado na jurisprudência pátria o entendimento de que as fundadas razões não se submetem à parâmetros subjetivos analisados pelo agente de segurança pública, como estereótipo do suspeito, etc.

Desta forma, a busca pessoal só poderia ser realizada pela autoridade judiciária ou policial, bem como seus agentes.

Flagrante facultativo

Contudo, a compreensão exarada pelo Tribunal nos leva a provocar a reflexão em torno da ilicitude da busca pessoal por seguranças privados e a possibilidade do flagrante delito facultativo, autorizado pelo art. 301 do CPP, versando que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”

Adiante, imaginemos a situação em que o proprietário de um comércio nota, por meio de seu circuito de vigilância interno, atitude suspeita de um consumidor que, furtivamente, parece retirar algo das prateleiras e colocar dentro de sua bolsa. Em razão disto, para proteger seu patrimônio da provável subtração, o proprietário aciona os seguranças particulares para que estes averiguem o ocorrido, os quais se aproximam do consumidor, agora suspeito, com a pretensão de realizar uma busca pessoal.

Eis que surge diante de nós duas situações, quais sejam: caso o consumidor aceite a busca pessoal em si, em suas vestes e em seus pertences tais como mochila e bolsos, este estaria dispondo de seu direito à privacidade e, a princípio, adimplindo com um pacto contratual implícito que este assinou ao adentrar no estabelecimento. 

Neste caso, poderíamos fazer uma comparação desta disposição de direitos fundamentais com a revista pessoal realizada por agentes de segurança particular em ambientes de entretenimento noturno, em que estes realizam buscar superficiais no corpo e nas vestes dos clientes após o pagamento do ingresso, e caso estes se neguem a se submeterem à pretendida busca, podem ser impedidos de entrar no evento.

Neste sentido, há luzidio entendimento de que o cliente que pretende entrar numa festa ou evento e paga uma taxa de entrada aceitando sujeitar-se à revista atua no âmbito de negociação privado, no qual a recusa a cumprir o estabelecido configuraria mero inadimplemento contratual, não merecendo a tutela do direito penal, resultando apenas no impedimento de entrada.

Entretanto, voltando a análise da hipótese sugerida, caso o consumidor se negue à busca pessoal, que medida caberia ao comerciante proprietário ?

Obviamente, há a possibilidade de acionar as forças policiais para que procedam a autorizada busca e constatem a ocorrência ou não do delito em suspeita. Mas e se o consumidor se negar a aguardar, por ter um compromisso urgente marcado ?

Alguns poderiam sugerir que o estabelecimento pode simplesmente fechar as portas e impedir que este se retire até a chegada do aparato de segurança pública. Todavia, seria hipótese de configurar-se algum delito previsto no diploma penal, como cárcere privado, nos termos do art. 148 do Código Penal?

Noutro giro, menciona-se que os lojistas, assim como os organizadores de eventos de entretenimento diversos, estão autorizados a dispor de instrumentos de vigilância “indiretos”, como detectores de metais, raios-X, portas giratórias e alarmes que apitam quando da saída de produtos não liberados pela passagem no caixa.

À vista disso, nota-se a seguinte agrura: caso os seguranças de uma loja ou qualquer outro local que se submeta ao alhures referido “pacto privado de buscas pessoais” notem, numa passagem de uma bolsa pelo raio-x, que esta armazena material entorpecente, estes estariam, a priori, autorizados a dar voz de prisão ao agente delitivo, em consonância com a disposição autorizativa do flagrante facultativo esculpido no art. 301 do CPP ?

Caso a resposta positiva se imponha, haveria de se analisar se o momento anterior ao flagrante, qual seja, a passagem pelo raio-x, seria meio de obtenção de prova ilícita, eis que configurar-se-ia em uma espécie de busca ilícita, visto que realizada por instrumentos particulares, operados por agentes particulares, resultando contaminado o flagrante pretendido ?

Por conseguinte, logramos destacar que as reflexões aqui propostas não visam, absolutamente, atacar o triunfante entendimento emanado do Tribunal Cidadão, mas tão somente provocar o direcionamento de melhores soluções para o aperfeiçoamento e perpetração dos mecanismos de segurança pública e respeito aos valores constitucionais e não expugnação da esfera privada do cidadão, buscando soluções que atendam ao interesse público sem ferir de morte os direitos fundamentais coletivos e individuais.


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Leonardo de Tajaribe da Silva Jr.

Bacharel em Direito pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal (UCAM). Pós-Graduando em Direito Penal Econômico (COIMBRA/IBCCRIM). contato: leonardotajaribeadv@outlook.com

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