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A (in)constitucionalidade do foro facultativo nas ações penais privadas

A (in)constitucionalidade do foro facultativo nas ações penais privadas

O Código de Processo Penal Brasileiro, ao tratar da competência territorial, estabelece que a regra geral – dentre as várias regras sobre competência (BADARÓ, 2014, p. 293) – é de que o processo e julgamento do delito se dará no Juízo do local onde o crime supostamente foi consumado ou onde praticado o último ato de execução (TOURINHO FILHO, 2011, p.156), consoante previsão do art. 70 do CPP.

Na impossibilidade de se apurar onde ocorreu a consumação, opera a chamada competência subsidiária (BADARÓ, 2015, p. 234), em que o legislador, por meio da regra do art. 72 do mesmo diploma, estabeleceu que será determinada pelo domicílio ou residência do réu.

Exceção a tal regra é a previsão contida no art. 73, que assim dispõe sobre o chamado foro alternativo ou facultativo:

Art. 73.  Nos casos de exclusiva ação privada, o querelante poderá preferir o foro de domicílio ou da residência do réu, ainda quando conhecido o lugar da infração.

Como se percebe, trata-se de uma faculdade conferida ao querelante, que poderá optar entre o local da consumação do crime e o local do domicílio ou residência do acusado, ao apresentar a queixa crime – e tão somente neste caso, excluindo portanto as ações penais públicas condicionadas e incondicionadas, e até mesmo a ação penal privada subsidiária da pública (BADARÓ, 2015, p. 236).

Ocorre que a constitucionalidade de tal regra é discutível, havendo posições doutrinárias favoráveis à regra, e outras no sentido de sua não recepção pela Constituição da República/88, por manifesta violação ao princípio do juiz natural.

A garantia do juiz natural está prevista no art. 5º, XXXVII e LIII da CR/88 e busca assegurar que uma causa seja julgada por um determinado juízo, tido como competente conforme prévia determinação legal.

Conforme defendido por Jorge de Figueiredo Dias (1974, p. 322) o conceito de juiz natural compreende um tríplice significado: (i) só a lei pode estabelecer o juiz competente (plano da fonte); (ii) a lei que fixa a competência deve ser anterior à prática do fato supostamente criminoso a ser julgado (plano temporal); e (iii) devem ser excluídas quaisquer regras arbitrárias ou discricionárias que porventura possam, pela conveniência, determinar o juízo competente (plano da taxatividade).

Nesse contexto, o art. 73 do CPP, ao permitir que a competência possa ser determinada pela livre escolha do querelante, acaba por violar o princípio do juiz natural, pois pela conveniência autoriza que a determinação do órgão julgador fique a cargo de quem acusa, o que aparentemente fere o critério da taxatividade – que justamente tem o escopo de proibir a criação de competências de forma discricionária e pela conveniência.

Além disso, pode-se dizer que a regra dá abertura para a criação de competência após o fato – e, portanto, não observaria também o critério temporal. Isso porque, mesmo que sejam restritas as opções do querelante, este poderá optar pelo juízo que mais lhe convenha no caso específico, depois da ocorrência do fato, podendo escolher entre o juiz com que tenha mais amizade ou aquele que seja mais severo na aplicação da lei penal – utilizando-se do exemplo de Gustavo Badaró (2014, p. 320).

Visão contrária é a de Espínola Filho (1945, p.112) sobre o tema, ao asseverar que o poder de escolha do domicílio ou residência do acusado para a propositura da queixa crime permite atender à maior comodidade do querelado, proporcionando uma defesa mais rápida, eficiente e segura, haja vista a desnecessidade de deslocamento para lugar diverso daquele onde o acusado reside ou possui atividade habitual.

No entanto, diverge-se de tal posição, pois sendo perfeitamente aplicável a regra geral (que determina a competência pelo lugar da consumação do fato ou, na sua falta, pelo domicílio ou residência do acusado), não se vislumbram justificativas plausíveis para a abertura de tal possibilidade, haja vista ser uma benesse conferida tão somente ao querelante.  Ademais, atender à maior comodidade do querelado não parece ser um fundamento aceitável, pois se assim fosse tal regra também deveria ser aplicável às ações de iniciativa pública e subsidiária.

Veja-se algumas decisões do e. STJ e e. STF em que a regra do art. 73 foi aplicada:

(...) Nesse passo, não há motivo para firmar a competência do local do crime (que teria sido Caruaru - PE), porquanto, cuidando-se de ação penal de iniciativa privada, pode o querelante optar pelo foro do domicílio ou da residência do réu, de acordo com o previsto no art. 73 do Código de Processo Penal, tal como se deu na espécie, em que a suposta vítima se dirigiu à Delegacia de Juazeiro do Norte para relatar o ocorrido. (...) (STJ - CC 130.295 - PE (2013/0326928-9), Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 15/04/2014) - g.n -

(...) tratando-se de querela privada, como na espécie, somente o foro do domicílio do querelado (e não o do ofendido) tem primazia sobre o do distrito da culpa, vale dizer, sobre o foro situado no “lugar da infração" (...). (STF - Inq 2954 AgR, Relator(a): Min. Celso de Mello, DJ 13/04/2011) - g.n -

(...) Versando a quaestio acerca de ação penal privada, conforme previsão do art. 73 do Código de Processo Penal, o ofendido pode escolher o foro no qual será oferecida a queixa, se o do local da infração, locus comissi delicti, ou o domicílio ou residência do querelado, forum domicili, não havendo, in casu, qualquer nulidade a ser sanada (...) - (STJ - HC 25.204/SP, Rel. Ministro Felix Fischer, DJ 30/06/2003) - g.n -

Diante disso, entende-se que o foro facultativo nas ações penais de iniciativa privada não parece estar de acordo com o princípio do juiz natural e, por conseguinte, à Constituição da República de 1988.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. – 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1974.

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 7.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado. vol. 2. 2. ed. São Paulo: Editora Freitas Bastos, 1945.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. vol. 2. 33. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011.

Ana Paula Kosak

Especialista em Direito Penal e Criminologia. Pesquisadora. Advogada.

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