Foro por prerrogativa de função não é sinônimo de impunidade
Foro por prerrogativa de função não é sinônimo de impunidade
Nos últimos tempos ele tem sido um dos principais assuntos da população. Ele é criticado, enxovalhado, atacado e seguidamente rechaçado por diversas pessoas. Não obstante ele se constitua como uma garantia prevista na Constituição da República, muitos não o enxergam assim. E pior. Muitos o enxergam como um inimigo.
O sujeito de todas as frases acima, de maneira direta, é nada mais, nada menos, que o famoso foro por prerrogativa de função, também chamado, equivocadamente, de “foro privilegiado”.
A Constituição da República, quando regulamenta o Poder Judiciário, ao prever competências para Tribunais Superiores, elenca que determinadas pessoas detentoras de uma função pública não serão submetidas ao julgamento de um juiz singular, mas de um órgão colegiado de grau de jurisdição superior.
Por exemplo, no artigo 102, inciso I, alínea “b”, a Constituição determina que o Presidente da República, o respectivo Vice, membros do Congresso Nacional (Deputados e Senadores), bem como os próprios Ministros da Corte Suprema, sejam julgados, no caso de cometimento de infração penal comum, pelo Supremo Tribunal Federal, originariamente.
Não existe, nesta hipótese, a possibilidade de o feito ser julgado por um juiz singular, pertencente, v.g., a uma vara federal de Curitiba, no Paraná.
Para boa parte da população essa previsão constitucional não tem razão de ser, porquanto seria uma “arma” ou uma “carta na manga” de parlamentares ou do próprio chefe do executivo para, em tese, “fugir” (entre aspas porque fuga não há) de um julgamento efetivo.
Porém, é cediço que militar em favor de tais opiniões pode significar desconhecer por completo a razão de existência do foro por prerrogativa de função ou, ao menos, entender que o problema está em não ser julgado por um juiz singular.
Vamos aos pontos que merecem destaque.
Em primeiro lugar, cabe dizer que efetivamente concordamos que no Brasil o foro por prerrogativa de função ultrapassou, em certos casos, o limite do razoável. Ao se passar os olhos em diversas Constituições Estaduais, por exemplo, é possível se inferir que um sem número de funções públicas acaba por ter a prerrogativa de foro.
Há, em muitas hipóteses, um verdadeiro exagero na previsão do foro especial, abrangendo servidores que sequer exercem uma função que detenha certa essencialidade pública que mereça tamanha proteção. É evidente que muito do que se apregoa como foro especial deveria ser banido e extirpado. Não temos dúvida.
Mas, por outro lado, não se pode perder de vista que o foro especial é, sim, figura essencial na manutenção do Estado Democrático de Direito, embora seja, para muitos, um instituto de difícil aceitação.
Não se pode olvidar que o foro, ao contrário do que se diz comumente, não é privilegiado, justamente porque ele não se perfaz como um privilégio concedido a alguém. Ele é uma prerrogativa.
E como toda prerrogativa, visa precipuamente proteger uma determinada função em virtude de sua importância, tanto que somente pode ser arguida quando o sujeito esteja em efetivo no exercício da sua função.
O foro por prerrogativa de função, pois, tem sua razão de ser agasalhada na proteção da função pública exercida pelo sujeito. Ou vocês realmente imaginam, por exemplo, que é perfeitamente cabível um Presidente da República ou um Governador de Estado ser julgado por um juiz singular do interior do país?
Embora não sejamos muito simpáticos com aqueles que se revestem nos cargos políticos, a importância dos mesmos para a condução do país não permite que sejam relegados a juízes singulares já extremamente assoberbados de trabalho e, muitas vezes, mais suscetíveis às pressões políticas e de poder que detentores de tais funções públicas podem exercer no seu convencimento.
E vejam que a negativa de remessa do processo aos juízes de primeiro grau não está justificada numa eventual incapacidade técnica dos mesmos julgarem – inclusive há juízes singulares muito mais capacitados que muitos magistrados superiores –, longe disso.
O que justifica a remessa do processo a uma corte com grau de jurisdição superior é justamente a proteção da função pública exercida, como também visa impedir que os detentores dos cargos protegidos se voltem contra os juízes de primeiro grau – muito mais vulneráveis às investidas do poder político.
Como assevera BADARÓ (2016, p. 248):
“Não se trata de um benefício ou privilégio da pessoa, mas de uma situação diferenciada em respeito e em decorrência do cargo exercido. Não é privilégio do indivíduo, mas prerrogativa do cargo, em razão da relevância da função pública exercida”.
Tanto é assim que o foro especial é “itinerante”, quer dizer, somente perdura enquanto o sujeito exerce a função. Não interessa, pois, as particularidades do sujeito, suas origens, seu nome, suas relações, o que importa é sua função, nada mais.
Perdendo-se a função, perde-se o foro. Tal entendimento pode ser retirado da Súmula 451 do STF.
Ademais, impende destacar que ser julgado por uma corte superior não significa ficar sem julgamento.
A propósito, pode ser até muito mais grave ao acusado, no sentido de sua defesa, ser submetido diretamente a um tribunal superior ou corte de apelação, visto que não terá a mesma oportunidade de recurso, “perdendo”, digamos assim, um grau de jurisdição.
O exemplo clássico disso reside justo no caso do “mensalão”, no qual os condenados não puderam manejar nenhum recurso propriamente dito, mas somente uma via de impugnação prevista no regimento interno do STF, conhecido como embargos infringentes.
Não houve, neste caso, a possibilidade de se manejar um recurso que levasse a matéria ao conhecimento de um órgão de segundo grau de jurisdição, pois a jurisdição, ali, era única. Qualquer erro cometido pelo STF seria impassível de reforma – a corte suprema tem a “vantagem” de errar por último.
Agora questiona-se: melhor ser julgado uma única vez, ou mais de uma por outros órgãos?
O problema, ressaltamos, não reside na previsão constitucional de foros especiais. O problema reside, na esmagadora maioria dos casos, na total falta de estruturação das cortes para julgamento de causas de competência originária, decorrentes do foro especial.
Mas aí, destaque-se, a celeuma não pode ficar adstrita à norma, pois esta está perfeita, mas deve se dirigir ao grave déficit de organização do judiciário, oriundo da falta de políticas efetivas de acesso à justiça e celeridade processual.
Tais deficiências não podem ser jogadas aos ombros dos réus.
Além disso, dificilmente será ampliando ainda mais a competência dos juízes singulares que iremos resolver o problema da suposta “impunidade” dos poderosos. Acreditamos, aliás, que tais medidas tendem a piorar muito mais o problema, agravando-o severamente, do que tendem a atenuá-lo.
Ou acreditam mesmo que um juiz do interior do país, de uma vara única, terá estrutura suficiente e qualificação necessária – não se esqueçam que o juiz iniciante começa sua carreira no interior – para julgar um suposto delito cometido por um prefeito, de maneira complexa, quando no mesmo dia tem que avaliar sobre a guarda de uma criança?
Em suma, não se pode perder de vista a importância do foro por prerrogativa de função na consolidação da democracia, sem embargo tenhamos muitas reservas no que tange à sua banalização.
Contudo, não é a garantia constitucional de foro especial o verdadeiro inimigo da celeridade processual, tampouco é a auxiliadora da “impunidade”.
Temos que começar a parar de esconder gravíssimos problemas estruturais por debaixo de críticas normativas, como se a lei fosse o efetivo problema.
É Preciso que comecemos a empreender uma luta por modernização, qualificação e estruturação do Poder Judiciário, assim como da Polícia e do Ministério Público, pois é nessas carências que de fato mora o perigo da não punição dos atores políticos.
É da grande lacuna estrutural e tecnológica que vivemos que se aproveitam aqueles que pilham o erário público.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.