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Fraquezas e lacunas do direito ao esquecimento

Fraquezas e lacunas do direito ao esquecimento

Esquecer algo não tem o condão de fazer com que aquilo deixe de existir. Poder esquecer significa, tão somente, poder deixar à margem da consciência e, por conseguinte, da vida cotidiana, aquilo que gera efetivo prejuízo à saúde individual e à vida digna. Esquecer não significa apagar. Esquecer é tão somente poder utilizar mecanismos naturais à dinâmica cerebral para seguir adiante.

O homem está naturalmente sujeito a lei do esquecimento, ele é fundamentalmente um animal obliviscences (WEINRICH, 2001, p. 17). As emoções são parte da vida, desempenhando papéis preponderantes tanto em tornar a vida boa ou má, como em fazer dela a espécie de vida que é, com tipo de identidade que se tem (STOCKER, 2002, p. 13). O esquecimento continua a ser a inquietante ameaça que delineia o plano de fundo da fenomenologia da memória e da epistemologia da história (RICOUER, 2007).

Diante do papel crescente da internet na vida social, coletiva e política, talvez uma das principais interrogações, hoje, sobre o tema “memória” é que esta se faz acompanhar, cada vez mais, do seu aparente e reverso, o “esquecimento”. A pesquisadora Louise Merzeau observa que “após saudar o acesso a uma memória enfim integral, a sociedade conectada começa, de fato, a temer seus excessos e a reclamar aos técnicos e aos juristas a instauração de um direito ao esquecimento”.

Mais do que um atributo intrínseco do ser humano, a dignidade é uma condição concretamente por nós conquistada, de modo que os direitos fundamentais não têm como função assegurar a dignidade, mas sim garantir condições para sua realização (SARLET, 2015, p. 58). Portanto, o que entendemos por dignidade humana?

Um postulado, um (meta) princípio, um fundamento do estado democrático de direito, um direito natural ou, ainda, uma construção cultural? Trata-se de um conceito hiante em permanente construção e assim deve, efetivamente, ser. Tal fluidez conceitual, contudo, não deve se tornar amplo a ponto de esvaziar o seu conteúdo. Sendo algo inerente ao ser humano, a dignidade existe para além do reconhecimento pela ciência jurídica e, como valor humano, deve ser protegida e promovida pelo ordenamento como um todo.

Na sociedade da informação, a liberdade para desenvolver-se livremente na construção da personalidade vem sendo, muitas vezes, aviltada na medida em que graves violações à privacidade são amplamente divulgadas e eternizadas pelas redes. As formas usuais de tutela da privacidade tornaram-se insuficientes, com a veloz circulação de dados permitida pelo incomensurável desenvolvimento tecnológico. Neste contexto de constante ascensão das tecnologias de informação e comunicação, o risco de “desintegração” da personalidade, mais especificamente da privacidade, tornou-se iminente.

O reconhecimento jurídico do instituto do “esquecimento” como direito autônomo se deu somente no final do século XIX, quando a percepção da pessoa humana passou a ser o ponto central dos ordenamentos jurídicos. A principal dificuldade advém do fato de que esses conceitos se distinguem “segundo parâmetros não só da época e do lugar, mas também do modus vivendi de cada um” (CARVALHO, 2003, pp. 77-119).

O conceito de intimidade traz consigo os segredos que a pessoa guarda para si ou compartilha com pouquíssimas pessoas, adquirindo um cunho tão pessoal que sua agressão ou revelação implicam forte abalo psíquico. Em suma, a identidade relaciona-se muito mais ao mundo intrapsíquico do ser humano, aos seus sentimentos, segredos enfim, àquilo que lhe é confidencial.

No que concerne à tutela da privacidade (intimidade e vida privada) é imperioso ressaltar que o direito de estar só – “right to be alone”; não se confunde com o direito de ser esquecido – “right to be forgotten”; e com o direito de apagar dados pessoais – “right to erasure”.

Diante desse novo contexto, passou-se a atribuir valor jurídico às “sensações”, e a proteção contra lesões corporais, por exemplo, alcançou a simples tentativa de lesão, em razão do “medo” que estas causariam. Os abusos cometidos, principalmente pela imprensa, numa sociedade em que a especulação sobre a vida alheia se tornou objeto de comércio e submeteu o homem a uma dor mental e a um sofrimento muito maiores do que aqueles perpetrados por meio das lesões corporais de natureza simples.

Dessa forma, o direito de “ser deixado em paz” visa assegurar que os indivíduos sejam protegidos em face da curiosidade dos demais. Pensar em um direito ao esquecimento, em um direito de esquecer e de ser esquecido, de ter seus atos silenciados pelo tempo e pela utilidade atual da informação, impõe-se a todos, devendo beneficiar, inclusive, os condenados que pagaram sua dívida com a sociedade e tentaram sua reinserção (OST, 2001, p. 160).

O problema está na constante rememoração dos fatos. Não se trata de apagar informações pelo simples fato de não gostar do que é dito, afinal não se trata de quaisquer dados, mas daqueles cuja perpetuação impede o livre desenvolvimento da personalidade, causando, inclusive, graves prejuízos à saúde individual. Mesmo que não esteja expressamente regulamentado no ordenamento jurídico brasileiro, o direito ao esquecimento, fundamental que é para o resguardo da personalidade e da saúde na manutenção de uma vida digna, encontra guarida em nossa legislação.

Não devemos, entretanto, esquecer os crimes de guerra, os crimes políticos, as torturas e os massacres, cujos autores foram identificados e imortalizados na história. Negar acesso a essas informações violaria, a um só tempo, o direito à memória, à informação, à história e, sobretudo, à democracia, vez que isto cercearia as condições de possibilidade para o exercício autônomo e crítico da cidadania.

Contudo, nos dias atuais, a memória coletiva – e a individual – não se restringem mais à imprensa escrita. Ultrapassado o marco temporal da notícia em tempo real (exercício do direito fundamental à liberdade de expressão e à informação), ou mesmo de eventuais punições resultantes de suas condutas, as pessoas têm o direito de reconstruírem sua vida de forma digna, porque têm o direito à saúde para a transcendência do trauma – justa ou injustamente sofrido –, e porque teriam direito a não expropriação de seus direitos da personalidade.

Aprender com a história e não se deixar escravizar pelos erros é uma das fundamentais diferenças entre uma democracia e uma ditadura, entre uma sociedade justa e outra justiceira. Por outro lado, retirar indivíduos processados e condenados por algum fato, depois de terem cumprido a pena imposta, de ter decorrido o lapso de reincidência, a oportunidade de reconstruir a própria vida parece ser solução que vai à contramão da vedação de penas perpétuas, desumanas e degradantes, porque impediria a própria possibilidade de ressocialização do condenado.

O direito ao esquecimento não se opõe ao direito fundamental à memória pelo simples fato de que seus objetos não coincidem: enquanto este repousa sobre o patrimônio histórico e cultural de um povo, aquele que envolve dados particulares.

O direito ao esquecimento contempla, pois, mais do que uma adequada tutela da privacidade, mas, sobretudo, a tutela da saúde em nome de uma vida digna. Como é importante esquecer algumas coisas, para que outras, verdadeiramente inesquecíveis, possam ser guardadas no relicário da nossa existência.


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Ana Paula Gambogi. O consumidor e o direito à autodeterminação informacional: considerações sobre os bancos de dados eletrônicosRevista de Direito do Consumidor, nº 46, 2003, pp. 77-119.

OST, François. O tempo do direito. Portugal: Instituto Piaget, 2001.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alan François (et. al.). Campinas: Unicamp, 2007.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

STOCKER, Michael. O valor das emoções. Traduzido por Cecília Prada. São Paulo: Palas Athena, 2002.

WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Tradução da Lya Luft. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.


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Maria Alice Severo

Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Penal Empresarial. Advogada criminalista.

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