Fraudes em audiência e o peticionamento para prequestionar e prevenir nulidades
Fraudes em audiência e o peticionamento para prequestionar e prevenir nulidades
Um dos grandes problemas da inquisição processual penal brasileira é a frequente prática de fraudes em atas da audiência, visando ocultar os desrespeitos às regras do modelo acusatório previsto na Constituição da República (CR), notadamente nos artigos 5º, inciso LV; 93, IX; 129, I etc.
Daí que as fraudes consistiram exatamente em constar informações sobre situações que não ocorreram na audiência, para maquiar os desvios praticados.
Muito embora as referidas regras constituam direitos fundamentais do cidadão processado, são, não raramente, desrespeitados pelos juízes, com o apoio dos promotores de justiça.
Assim, cabe à defesa (seja pública ou privada) questionar o descumprimento e pedir que seja constado na ata de audiência para posterior questionamento na via recursal.
Muito bem, em relação às audiências criminais, reguladas sobretudo pelo artigo 212 do Código de Processo Penal (CPP), observa-se que referido artigo, obedecendo à CR, traz uma forma de inquirição das testemunhas proveniente do sistema acusatório de processo penal (modelo inglês do século XII), que é diverso do sistema inquisitivo (da inquisição eclesiástica da Idade Média originada no século XIII).
Assim sendo, o artigo 212 incube às partes (acusação e defesa) a titularidade da feitura das perguntas às testemunhas, cabendo ao juiz, além de presidir a audiência e coordenar o debate garantindo o respeito às normas, apenas esclarecer eventual ponto não esclarecido nas perguntas (parágrafo único do citado artigo 212).
Isto é proveniente exatamente dos princípios do contraditório e da ampla defesa/argumentação da CR (art. 5º, LV)!
Neste contexto, observa-se que o princípio do contraditório, na sua versão mais atualizada ao ambiente democrático, garante não apenas o direito de ação e reação das partes no debate, dando à uma sempre a oportunidade de contradizer o pedido ou manifestação da outra, mas também os direitos de influência, nas decisões do juiz (com seus argumentos), e não surpresa destas, o que impede o juiz de decidir sobre questão não colocada em debate. Isto serve para assegurar a própria imparcialidade do juiz, outro princípio importantíssimo dos processos democráticos.
Já em relação ao princípio da ampla defesa/argumentação, que se distingue do contraditório – apesar de muitos confundirem ambos –, pressupõe a igualdade entre as partes, defesa e acusação, de modo que possibilita ampla possibilidade de argumentação e produção de provas no processo, possuindo duas dimensões: a defesa técnica; e a autodefesa.
Enquanto a defesa técnica consiste no direito (indisponível) do jurisdicionado de ser representado por advogado (ou defensor público), a autodefesa lhe garante a possibilidade de atuar pessoalmente no processo, sobretudo em seu interrogatório que, antes de ser um meio de prova, deve ser entendido como meio de defesa.
Isto implica na ilegalidade dos indeferimentos (pelo juiz) das perguntas, formuladas pelas partes, que são pertinentes ao caso discutido, situação em que o defensor deve exigir que seja constado na ata da audiência, com o devido protesto, para discussão posterior em eventual recurso – ainda que não seja visto com bons olhos pelo juiz ou até pelo promotor.
Infelizmente nossa prática jurídica impõe muitas barreiras ao cumprimento das leis e da Constituição, exigindo, muitas vezes, do advogado ou defensor público, muita coragem na atuação para exigir o cumprimento das leis – por exemplo que seja constada a ausência do promotor ou até do juiz em ata de audiência, e a inversão de suas atribuições e funções na forma da inquisição –, a ponto de juízes e promotores chegarem até a atos desrespeitosos, como afirmações de que não lhes interessam a lei ou mesmo o entendimento de tribunais superiores, e que fazem “da forma que quiserem”.
Fraudes em audiência
E as fraudes nas atas não se limitam à inquirição das testemunhas, mas atinge também situações como, por exemplo, em relação à presença do acusado na audiência. Como tem sido feito? E como deve ser feito?
A importância desta questão se dá pelo fato de, sendo o acusado o último a ser ouvido, alguns juízes não permitem, sem justificativa, a sua presença na audiência enquanto são inquiridas as testemunhas e/ou o ofendido.
Muito bem, o atual artigo 217 do nosso Código de Processo Penal garante a presença do acusado durante toda a audiência, tendo como único motivo para sua retirada a eventual intimidação que ele ocasione na testemunha, ou na vítima, e, diante desta situação, não ser possível a videoconferência, que é, basicamente, a comunicação por meio de vídeo em tempo real e em locais diferentes.
Ou seja, caso haja intimidação, deve-se primeiro verificar a possibilidade da videoconferência, de forma que, apenas se não for viável, o acusado deverá ser retirado da sala, para, assim, a testemunha ou o ofendido ter tranquilidade e paz para prestar o depoimento.
Mas e o que justifica esta insistência do legislador processual em manter o acusado na sala de audiência?
Muito poderia ser discutido sobre tal questão, mas dois princípios parecem resumir melhor a questão: o da publicidade do processo (artigo 5º, inciso LX, CR); e o da ampla defesa/argumentação (art. 5º, LV, CR).
Em relação ao princípio da publicidade, cabe destacar que, em modelos democráticos, como o previsto na nossa CR/88, não se admite mais que os atos do serviço público se façam às escondidas do cidadão, principalmente do acusado em processo judicial, já que os processos secretos são realizados em governos totalitários, na forma de inquisição, como a da nossa ditadura militar, encerrada em 1985.
Já o princípio da ampla argumentação, no que toca à já mencionada defesa técnica do advogado, postula por um contato constante deste com o acusado. E isso se dá por variadas razões, dentre elas: para a produção de contraprova no momento em que a defesa formula as perguntas à testemunha; para saber se a testemunha está mentindo e posteriormente questioná-la; para o acusado saber do que se defender quando do seu depoimento (autodefesa) etc.
Neste sentido, quando o juiz desrespeitar as referidas regras, o advogado deve fazer o devido protesto, com as pertinentes justificativas, e, caso o juiz mantenha a sua decisão, pedir que seja constado na ata de audiência para posterior recurso.
Como medida preventiva das irregularidades, uma prática interessante é o prévio peticionamento, quando da designação da audiência, argumentando a importância da aplicação destas regras, citando leis e jurisprudências.
Ainda, dependendo das circunstâncias, é aconselhável inclusive que, ao início da audiência, o advogado peça a palavra para “sugestionar a aplicação das referidas garantias legais”.
Lado outro, uma questão importante tem sido a recente prática de colheita da prova oral por meio de gravações audiovisuais, ao invés das transcrições em atas dos depoimentos, formato que, sem dúvida, tem inibido, em boa parte, as mencionadas fraudes nas audiências, muito embora ainda se exige muito da performance da defesa para fiscalizar a regularidade dos atos processuais.
Não obstante, uma das questões mais importantes para a advocacia é a necessidade de nos darmos conta de que a defesa não pode pautar sua atuação para servir de degrau para estreitar laços fraternos com juízes e/ou promotores, mas, antes de tudo, fazê-la de instrumento de defesa dos direitos do cidadão representado.
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