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Freud e o mal-estar processual penal

Freud e o mal-estar processual penal. Falar sobre “O mal-estar na civilização”, de Freud, é falar, de forma sintética e parcial, dos antagonismos, encontros e desencontros que têm o homem em relação às restrições advindas da sociedade e do seu próprio ser, pulsional e clivado (e aqui já se inicia o mal-estar).

Este ser, que Nietzsche chamou de divíduo – porque dividido –, ao invés de indivíduo, curiosamente pensa, quase sempre, de forma totalitária. Externa este pensamento através do saber científico. É por esta razão que a história da ciência possui como marca, entre outros fatores, a busca incessante pelo “todo”, pela totalidade.

Esta história da ciência, que sempre buscou o todo, é facilmente ilustrada, senão vejamos.

1) Buscou-se o remédio para a cura de todas as doenças. Chegou-se a cogitá-lo e nomeá-lo. O que se não tinha cogita à época era a impossibilidade de tal tarefa, mormente pela complexidade do corpo humano.

2) A história também nos dá notícias de civilizações e impérios grandes o suficiente para perdurarem pela eternidade. Esta mesma história nos dá notícia da ruína destes impérios, como exemplos a não serem seguidos e também para que se tenha certeza de que nem as maiores sociedades são perfeitas e eternas. Infelizmente, neste caso, os exemplos passados não estão servindo como diretriz para o presente. Não se percebe que o erro primordial de antes está, principalmente, no desrespeito à alteridade, na ignorância, na intransigência, na busca incessante e indiscriminada pelo poder, na subjugação do ser humano. A história, contudo, repete-se ciclicamente. O final, não há dúvidas, também irá se repetir.

Aliás, já se repete, como vemos diuturnamente nos jornais e revistas, sob o nome de crise global. Mas de qual “crise global” se trata?

Esta é a crise do modelo capitalista e neoliberal de Estado. Não é à toa que quando se fala em crise global, os países citados e que fazem parte desta crise são os Estados Unidos, os países europeus, o Japão, etc.

Alguém tem notícia da crise global em Zimbábue? Eu penso ter: Presidente corrupto, inflação, 94% da população economicamente ativa desempregada, tentativas de golpe de Estado, etc. A diferença é que lá a crise global dura décadas, mas nunca foi e nem é noticiada, senão de forma rasa. Assim também ocorre em diversos outros Países, a citar Timor Leste e Serra Leoa, para lembrar apenas dois.

Ocorre que estes países não se inserem no adjetivo “global”, e aqui o jogo discursivo é evidente. Global não envolve a globalidade. O global não representa o todo, mas sim o todo que faz parte do capitalismo, excluindo-se os demais. As alternativas buscadas para superar a crise não incluem os excluídos, que já se encontravam em crise social, sanitária, financeira, cultural, muito antes da dita crise global.

Aqui já fica uma primeira lição: o todo é demais para nós. Demais porque somos seres de linguagem, principalmente.

Existem, além destes, vários outros exemplos da busca da totalidade pelo homem. Freud, no mal-estar, fala-nos sobre a religião, conceituando-a como “o sistema de doutrinas e promessas que, por um lado, lhe explicam os enigmas deste mundo com perfeição invejável, e que, por outro, lhe garantem que uma Providência cuidadosa velará por sua vida e o compensará, numa existência futura, de quaisquer frustrações que tenha experimentado aqui.”

Falar sobre religião é algo muito delicado, para quaisquer interlocutores com que se venha a discutir. Ao meu singelo modo de ver, contudo, a religião também é um modo de externar o anseio pela totalidade que sempre busca o homem. Neste caso, a totalidade da vida: a vida eterna.

A promessa de vida eterna é tentadora. Não por outra razão, em maior ou menor grau, nunca se abandonou por completo a crença em um poder superior, criador da vida e detentor da “morte”. Morte que seria apenas uma passagem para algo melhor, uma passagem do homem terreno, imperfeito, pecador, dividido e finito, para uma vida eterna, perfeita, infinita e, quiçá, com mil virgens.

O discurso, portanto, é sedutor, mormente para aquela parcela da população – a maioria – que apenas passa pela vida. Vive marginalizada, espoliada, privada das necessidades mais simplórias, enfim, sofrem para que alguns possam gozar da vida de forma plena e irrestrita (sempre dentro da plenitude permitida pela pulsão). Afinal, é certo que a riqueza e a ostentação de poucos se faz pela miséria de quase todos.

Oferta-se, portanto, a plenitude de uma vida posterior, haja vista a impossibilidade material em se ter esta vida ainda na terra.

Não há dúvidas de que a essência do conceito de religião trazida por Freud pode ser transportada, mutatis mutandis, para a relação existente entre o juiz e seus jurisdicionados, principalmente no processo penal. Mormente se ligarmos a esta questão a ideia de totalidade, ainda incrustada pela filosofia da consciência, modo de pensar este que ainda não conseguimos abandonar por completo.

A aproximação que se faz, neste sentido, é em relação à dificílima questão de julgar, de sentenciar.

A partir da filosofia da linguagem, percebeu-se induvidoso que o ato de julgar não está adstrito apenas aos fatos narrados em juízo, à capitulação destes fatos, às provas trazidas aos autos, etc. O ato de julgar envolve, indiscutivelmente, um complexo de fatores dentro dos quais o juiz está imerso. São fatores políticos, ideológicos, linguísticos, sentimentais, conscientes, inconscientes e, também, legais e constitucionais.

Não acredito que estes últimos – os legais e constitucionais – sejam sempre os determinantes nas decisões, ainda que devessem ser. Muito pelo contrário. No processo penal, ainda se opera majoritariamente com uma lógica dedutiva: é o que se denomina primado das hipóteses sobre os fatos (Franco Cordero). As hipóteses prevalecem em juízo, vale dizer, o juiz em primeiro lugar elege uma hipótese para, posteriormente, fundamentar uma decisão para a sociedade (decisão esta que implica em efeitos concretos a quem se submete diretamente a ela). A crença na possibilidade do real é evidente.

A fundamentação, nestes casos, advém como mera forma de resposta aos anseios sociais. Anseios estes advindos da ética e da lógica neoliberal, midiática e mercadológica, quase nunca Constitucional.

Esquece-se, contudo, que a função da fundamentação é legitimar a decisão jurídica e, assim, legitimar a própria prática do Poder Judiciário, haja vista que a democracia, aqui, está nas decisões e suas fundamentações, diferentemente dos outros Poderes, nos quais a fundamentação democrática se encontra no voto popular.

Ademais, a função do juiz é garantir o cidadão contra o poder e o arbítrio estatal, mesmo que contra todos; garantir o cidadão e aplicar a CR (não por outra razão ser ela contra-majoritária).

Outro fator que também faz questão neste momento, é a ideia de solipsismo que, como máscara ficcional, é prática corrente e deprimente no ato de julgar.

O conceito de solipsismo é manejado de acordo com uma visão epistemológica: “solipsismo é a crença filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a conseqüência externa de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles.”

Aqui penso encontrar um gancho entre a busca pela totalidade científica antes discutida e o ato de julgar. O juiz solispsista se enclausura em suas experiências e, a partir delas, encontra todas as respostas, desde o combate ao crime até brigas entre vizinhos. Também busca, a partir destes nortes – principalmente combate à criminalidade, ao terrorismo, ao crime organizado, corrupção – interpretar a lei penal.

Não que se não deva interpretá-la – a lei – mas a questão é que se deve fazê-lo seguindo-se alguns parâmetros. Não pretendo discuti-los – os parâmetros – de forma minudenciada, mas apenas apontar um referencial que entendo ser adequado: as palavras contidas na lei comportam qualquer interpretação, a não ser aquela que desdiga as próprias palavras ali contidas. Assim, penso incompreensível interceptações telefônicas de 6 meses, 1 ano, 2 anos, quando a lei estipula o prazo de 15 dias, prorrogáveis por mais 15 dias, uma única vez. Também é absurdo dizer que arma de brinquedo é igual a arma de fogo, e assim por diante.

O que se deve perceber é que quando se leva um caso em juízo, o juiz é o portador da fala, é o portador da última palavra sobre aquela determinada situação e, assim sendo, todos os problemas relativos à causa são postos diante dele, a fim de que se obtenha uma resolução de mérito. Deve dar respostas adequadas a estas querelas, e não quaisquer respostas.

Não dar quaisquer respostas, porém, passa por negar o solipsismo. Isto porque ao se enclausurar em suas experiências, em seus conceitos, o juiz não abre oportunidade à alteridade, a uma outra possibilidade, a um outro ponto de vista.

E abrir oportunidade à alteridade, à afirmação do outro – que no processo penal é sempre o réu – significa levar a sério um princípio reitor do processo penal e que, embora negado diuturnamente, consta expressamente do texto constitucional. Trata-se do princípio da presunção de inocência, bem como seus corolários, entre eles, o princípio in dubio pro reo, relativo à apreciação do conjunto probatório.

Penso, portanto, que a única alternativa viável para a afirmação da alteridade no processo penal é se levar a sério este princípio.

Uma possibilidade pensada para esta tarefa seria admitir o primado das hipóteses sobre os fatos como válido. Porém, a racionalidade deve ser invertida. Quando se fala em primado das hipóteses sobre os fatos, pensa-se sempre na hipótese acusatória como verdadeira, num claro exercício de presunção de culpa. Entretanto, se o primado das hipóteses sobre os fatos for operado ao inverso, isso significa que a imputação contida na denúncia ou na queixa crime deve ser sempre concebida pelo órgão jurisdicional como uma mentira.

Se a hipótese for esta – a mentira da imputação – a presunção de inocência será levada a sério, de forma como deve ser. Talvez haja aqui uma possibilidade democrática de se pensar o processo penal, reduzindo-se o mal-estar concreto tanto do juiz, que não irá ter respostas para tudo e nem chegar a uma verdade sobre os fatos, como para o réu, que terá o benefício da dúvida em seu favor. Não por outra razão já se disse anteriormente:

“democracia – a começar a processual – exige que os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que se não exige que o legislador, e de conseqüência o juiz, seja tomado completamente por neutro, mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se não mais a neutralidade, mas a clara assunção de uma postura ideológica, isto é, que sejam retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais” (Jacinto Nelson de Miranda COUTINHO, O papel do Juiz no Novo Processo Penal).

Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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