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A “fuga” na Execução Penal

A fuga na Execução Penal

Pode-se dizer que a Execução Penal sempre foi – e continua sendo – uma espécie de submundo do Direito: no mundo do dever ser há uma lei específica regulamentando a matéria (Lei n.º 7.210/1984).

Todavia, no mundo da realidade, o que impera são os costumes, a arbitrariedade e o livre decisionismo; a legislação, notadamente no âmbito da fase de cumprimento da pena, não tem valido nada.

A Lei de Execução Penal é um exemplo, por excelência, de ineficácia do princípio da legalidade. Com efeito, o Estado não concretizou metade sequer das disposições concernentes aos estabelecimentos prisionais, previstas expressamente no Diploma em testilha.

Por exemplo, o escopo delineado no art. 1º da Lei n.º 7.210/84 chega a ser risível: nenhum presídio brasileiro, hodiernamente, apresenta condições para proporcionar uma “harmônica integração social do condenado”.

O que se dizer, então, da assistência – que abrangeria assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa – ao preso e ao internado, que deveria ser assegurada pelo ente estatal objetivando “prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.”

Nessa linha, não constitui exagero afirmar, como costuma apontar Amilton Bueno de Carvalho, que a pena de prisão é um fracasso, não servindo para outra coisa, senão para piorar o ser humano e torná-lo mais violento, já que, no interior do cárcere, é necessário delinquir todos os dias para sobreviver.

O que se ensina e incentiva, hoje em dia, é a violência e a vida criminosa. Um sujeito sentenciado à longos anos de pena, possivelmente perpetrara, nas dependências do presídio, diversos delitos todos os dias para conseguir, ao menos, sobreviver; logo, fatalmente, o crime passa a ser a sua rotina, o seu hábito, a sua vida, de modo que, se um dia solto, restará provavelmente prejudicada a finalidade de “harmônica integração social”.

Sem embargo do notório fracasso que se percebe da pena de prisão, não seria incorreto dizer que, em nosso país, a pena de prisão sequer foi implementada como deveria: a Lei n.º 7.210/1984 não fora minimamente efetivada pelo Estado. Eis a consequência: temos uma pena de prisão que vem sendo ilegalmente aplicada há muito tempo, porquanto o cumprimento tem se operado à margem da lei.

Ou seja: de um lado, deparamo-nos com o fracasso da pena de prisão que vem sendo imposta; de outro, percebemos que a verdadeira pena de prisão prevista em lei nunca fora implementada.

A Execução Penal é uma matéria tão abandonada no Brasil que os manuais específicos da matéria tendem a ser manuais genéricos, doutrinas banais que se limitam a dizer  o mesmo sobre o mesmo, normalmente repetindo as disposições legais e fazendo um comentário ou outro sobre o assunto.

A doutrina, assim, não fornece a atenção necessária e a seriedade que merece a matéria de Execução Penal. O tema relativo às faltas graves no âmbito de cumprimento da pena é um exemplo claro disso.

Os manuais de Execução Penal, em sua maioria, limitam-se a repetir a legislação, destacando que configura falta grave a conduta, v.g, de fugir do sistema prisional. E só. Nada mais analisam e tampouco criticam.

Ora, é preciso saber que as consequências do reconhecimento de uma falta grave são significativas e extremamente graves no processo de execução da pena. Como é cediço, uma falta grave reconhecida enseja a alteração da famigerada data-base, sobre a qual se calcula o benefício da progressão de regime.

 Dito de outro modo: o reconhecimento judicial de uma falta grave se assemelha a superveniência, grosso modo, de uma nova pena, uma vez que haverá uma constrição do direito de liberdade em virtude da falta perpetrada, submetendo o apenado a condições mais severas de cumprimento da pena.

E o que se pretende dizer com isso? Evidentemente que a matéria atinente às faltas graves vai muito além da mera subsunção formal do fato à norma, como a doutrina a tem tratado.

A fuga, por exemplo, é uma infração disciplinar de natureza grave, prevista no artigo 50, inciso II, da LEP, cujo teor se transcreve:

Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:
(...) II - fugir.

Entretanto, não é toda e qualquer ausência do sistema prisional que caracteriza fuga. Isto é: não basta à subsunção formal do fato à norma. É preciso, para a caracterização desta falta grave, que o preso aja com o animus de foragir, ou seja, de se esquivar do sistema prisional e da administração da justiça, impedindo o Estado de executar a sentença que é devida.

Fugir, por conseguinte, não se confunde com as condutas de ausência ou de mero atraso. É fundamental que haja a comprovação, via processo administrativo disciplinar, da intenção do segregado de não cumprir o édito condenatório.

Neste particular, a análise da suposta conduta faltosa do preso deve ser realizada com parcimônia.

Diante das graves consequências do reconhecimento de uma falta grave, uma vez que refletem severamente sobre o status libertatis do sujeito, meros atrasos (como de 15min, 30min, 1h, por exemplo), desde que haja o retorno espontâneo do indivíduo – o que denota a ausência da intenção de se esquivar da pena – não devem ser enquadrados como falta grave (fuga), senão como infrações disciplinares de caráter médio (e não grave).

Inclusive, o Regimento Disciplinar Penitenciário do Estado do Rio Grande do Sul prevê, em seu artigo 12, inciso I, que constitui falta média o atraso do retorno do serviço externo e das saídas temporárias.

Destarte, numa singela abordagem, conclui-se que não é toda e qualquer ausência e/ou atraso que caracteriza a falta grave estampada no inciso II do artigo 52 da LEP.

É imprescindível a demonstração concreta da intenção do agente de se furtar ao cumprimento da pena (o animus de fuga); do contrário, estará caracterizada mera infração disciplinar de natureza média.

Ainda, não se pode descartar a possibilidade de ocorrência das hipóteses em que o sujeito emprega fuga do sistema prisional para garantir a sua própria integridade física, como ocorre quando o Estado não lhe assegura a proteção necessária no interior da casa prisional.

Evidentemente, trata-se de situação de estado de necessidade (onde se sacrifica um bem menos relevante – a lei – para proteger outro de maior relevância – a vida ou a integridade física), aplicando-se à fuga a mesma inteligência que se aplica ao delito, vale dizer, é hipótese de exclusão da ilicitude da conduta, afinal, é dever do Estado prezar pela vida, segurança e saúde de seus custodiados.

Um abraço e até semana que vem!

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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