ArtigosDireito Penal

O funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs

O funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs

Para os funcionalistas sistêmicos ou radicais, conduta é a provocação de um resultado evitável, violador do sistema, frustrando as expectativas normativas.

Jakobs entende como sendo o fim do Direito Penal a estabilização do conteúdo da norma; não se trata de proteção dos bens jurídicos, mas, sim, na manutenção e confirmação da vigência da norma.

Para ele, o bem jurídico-penal é a expectativa normativa essencial à subsistência da configuração social e estatal frente às violações das normas, destacando que a proteção de bens jurídicos se constitui em um resultado meramente mediato da função da pena de asseguramento da vigência da norma.

Ele diferencia o bem jurídico (objeto de proteção de algumas normas – normas em geral) do bem jurídico-penal (aquele que visa manter as expectativas normativas essenciais).

Expectativas normativas decorrem do fato de as pessoas, no mundo social (meio social), estarem vinculadas por normas (leis) e esperarem (daí expectativas) que suas condutas esteja de acordo com essas normas. Dito de outro modo, as regras de convivência social quando impostas por lei, denotam que os membros de determinada sociedade a valorizam tanto que a elevaram a essa categoria (ser objeto de Lei).

Assim, quem descumpre a lei por não exercer um comportamento por ela regrado viola o sistema jurídico e, o sistema jurídico deve ser resguardado pelo Direito Penal, sob pena de se perder em sua essência valorativa. Para Jakobs, a proteção que se dá ao patrimônio pelo Direito Penal ao tutelar o furto simples (art. 155 do CP) deve ser levada à sério.

Caso haja um furto, não importa o valor do bem subtraído. Importa é que houve uma violação da norma, frustrando a legítima expectativa que o titular do bem tinha de que ninguém subtrairia tal coisa. Assim, o Direito Penal deve incidir para garantir a vigência da norma para todos os outros membros da sociedade pois, caso contrário (se o autor do furto não for punido) ninguém mais respeitará o patrimônio alheio. Vejam que o que se protege aqui é a NORMA.

Para ilustração, podemos nos valor do filme “Piratas do Caribe”. No enredo, os piratas deve obedecer um código. Esse código (complexo de normas) é guardado pelo pai do Capitão Jack Sparrow.

Quando das reuniões entre os piratas, um deles expõe tomarão uma medida que violaria o código pirata, o guardião desse código aparece em cena para reforçar que quem violar o código sofrerá as consequências. O guardião do código pirata é Edward Teague. Assim, o Direito Penal seria o guardião do código. As expectativas legítimas seriam as de que as normas do código não seriam violadas, ainda que sejam interessantes ao grupo.

O Direito Penal está a serviço da estabilização contrafática de expectativas, motivo pelo qual Jakobs considera a norma como uma expectativa de conduta contrafática estabilizada. As pessoas não sabem o que esperar das demais, os sistemas sociais surgem com o objetivo de assegurar a expectativa das pessoas no tocante às atitudes das outras, garantindo-se um convivência mais segura ou, ao menos, previsível.

O Direito Penal detém a função de garantir a manutenção das normas que alicerçam a estrutura social pois que a sociedade se constitui por meio de normas e delas retira a sua identidade. Na vertente funcionalista radical de Jakobs, o Direito Penal serve à manutenção da identidade de uma dada sociedade.

Nesse ponto, o delito não é considerado um choque entre indivíduos ou grupos referentes a seus bens jurídicos particulares é, na verdade, um questionamento sobre a ordem jurídica constituída (o direito posto), de forma que a compreensão do delito deve ultrapassar o “eu” para o “nosso” (social). A sociedade é que é protegida e não o bem da pessoa vítima de um delito patrimonial.

A proteção das pessoas é uma decorrência lógica da proteção da sociedade pois que, protegia a norma (o sistema) as pessoas seriam obviamente protegidas.

Na sociedade, todos os membros desse corpo social, possuem direitos e deveres que devem ser, respectivamente, garantidos e exigidos. No delito, essa relação jurídica de respeito a direitos alheios é violada pelo criminoso, sendo essa violação um pressuposto do delito. Se sou proprietário de um bem, por lógica, excluo as outras pessoas de qualquer direito real sobre tal e, por óbvio, essas pessoas possuem deveres de não perturbarem-me quanto ao exercício ordeiro do bem que sou titular. O crime seria a interferência indevida.

Para Jakobs, transgredida a norma há uma consequente decepção nos demais indivíduos e, aí, a ingerência do Direito Penal se torna necessária para restabelecer a segurança pois que, com sua ação, o Direito Penal reafirmaria a vigência da norma e asseguraria aos indivíduos que suas expectativas de ordem não seriam novamente defraudadas. A norma corresponderia a uma expectativa normativa de comportamento.

Violada essa expectativa, aplica-se uma sanção como forma de reafirmar a expectativa frustrada, negando-se que o fato praticado seja correto e se afirmando como correto o comportamento determinado pela norma. A pena é quem desempenha esse papel responsável pela reafirmação de vigência da norma.

Diante da violação da norma, estabelece-se um conflito entre a atitude individual e a expectativa social. Nesse momento, a pena surge para reafirmar à sociedade a confiança que seus membros podem depositar na norma. A norma é reafirmada e, consequentemente, a sociedade volta a ter confiança.

O convívio social necessita de que as pessoas confiem na atividade de acordo com o Direito dos demais. Os destinatários da pena não são tanto os potenciais delinquentes, mas todos os cidadãos que vivem em sociedade pois que, o que importa para Jakobs, não são as pessoas, mas o significado social de suas ações em relação à vigência da norma.

A pena não atinge, sob esse prisma, o modo de ser ou agir do delinquente e não se volta ao indivíduo criminoso mas, sim, ao significado de seu ato e à comunicação que ele estabelece com terceiros. A pena exerce uma função preventiva geral por meio do reconhecimento (afirmação) da norma.

O fato proibido que incorre o agente representa uma rebelião contra a norma e a pena surge, então, como uma reprovação dessa rebelião. Em suma: a pena é voltada a contradizer e desautorizar a desobediência à norma.

Questão polêmica é quando se trata da inimputabilidade por doença mental na vertente de Jakobs. Como ficaria a culpabilidade do agente portador de tal moléstia?

Jakobs responde que toda a ausência de culpabilidade significa a retirada de sentido comunicativamente relevante da conduta, transformando-a em algo relevante apenas individualmente, pertencente, portanto, ao mundo natural.

A conduta proibida é uma contestação ou desautorização da norma e a pena seria a reafirmação da vigência da norma violada. A culpabilidade seria voltada a sistematizar a competência (aptidão) do agente em desobedecer a norma ou as situações especiais que afastam essa desobediência (inexigibilidade de conduta diversa; erro de proibição; coação moral irresistível; obediência hierárquica; etc.). A culpabilidade não depende da situação psíquica do agente mas, sim, da comunicação que o agente produz no meio social.

Dito de outro modo, a conduta de um doente mental não produziria a comunicação contrária à vigência da norma, não se falando nesse caso em crime pois, ao inimputável falta a culpabilidade não porque não podia atuar de outra forma, mas porque a sociedade não concebe a necessidade de estabilização de uma expectativa normativa dele, já que a conduta do inimputável não comunica algo suficientemente relevante a desautorizar a norma.

O doente mental ao praticar um delito não choca os valores sociais colocando em descrédito nossa expectativa de que a norma perca seu vigor (força). A conduta do inimputável pode até causar espécie, ira, fúria, etc., mas não nos deixa com a sensação de que a norma perdeu força.

O conceito analítico de crime seria assim compreendido:

CRIME

  • Fato Típico
  • Ilicitude
  • Culpabilidade
  • Conduta

Conduta, para o funcionalismo sistêmico, seria o comportamento humano voluntário, causador de um resultado evitável que viola o sistema jurídico frustrando as legítimas expectativas normativas.

Günther Jakobs (Ob. Cit.), ressuscitou do programa do partido nazista, desenvolvido por Edmund Mezger, o direito penal do inimigo. Por isso, foi um autor muito criticado pelos estudiosos do Direito penal. Ele desenvolve seu raciocínio tomando como base a teoria sistêmica de Niklas Luhmann.

Nos dizeres do professor Fernando GALVÃO (2016).

Luhmann ressaltou que as possibilidades do comportamento humano são muitas e que ainda são potencializadas pela complexidade da sociedade em que vive. Como o homem interage com os demais, diante da presença dos outros, não sabe ao certo o que pode esperar do outro, nem o que o outro pode esperar dele. Por isto, é fundamental que as expectativas de comportamento sejam claras e estabilizadas. Antes de considerar a teoria dos sistemas autopoiéticos (autorregulados), Luhmann sustentou que são as expectativas e as expectativas de expectativas que orientam o comportamento humano e a interação social, reduzindo a complexidade da sociedade de modo a tornar a vida mais previsível e menos insegura. Os sistemas sociais (incluindo o direito) são constituídos para assegurar estas expectativas, fornecendo aos homens modelos de comportamentos que direcionam suas expectativas em relação aos demais. Luhmann fez distinção entre as expectativas cognitivas e as normativas. As expectativas cognitivas dizem respeito ao conhecimento da realidade natural e, quando desapontadas, deixam de existir ou se adaptam. As expectativas normativas, por outro lado, exigem reafirmação quando de sua violação. A expectativa normativa se mantém apesar de sua violação pelos fatos (contrafaticamente). A expectativa é considerada adequada e sua violação gera a exigência de adaptação da realidade à expectativa. Com base nestas noções, Luhmann concebeu a norma jurídica como uma expectativa de comportamento estabilizada contrafaticamente. Como as expectativas normativas não podem ser constantemente desapontadas, pois acabariam perdendo a credibilidade, o desapontamento deve gerar uma reação que reafirme a validade da norma violada. A intervenção punitiva do Direito Penal constitui uma das possíveis reações que cumprem a função de reafirmar a validade da norma. Por isso, o sistema de Jakobs substitui os elementos ontológicos, sobre os quais se edificaram o sistema clássico e o finalista, pelo conceito normativo de responsabilidade pela infração à norma, sustentando que a missão da pena (Direito Penal) não é a proteção de bens jurídicos, mas a reafirmação da vigência da norma jurídica. Jakobs define a pena como uma mostra da vigência da norma para o responsável por sua violação. Para a verificação concreta da violação à norma Jakobs sustentou a necessidade de considerar o papel que cada indivíduo exerce na sociedade e as expectativas que lhe são dirigidas, posto que cada um deve ser garante apenas das expectativas que sobre si recaem.

Como dito acima, Luhmann entende que os sistemas sociais são aqueles constituídos por comunicação, tudo que não é comunicação está no ambiente. Isto quer dizer que o homem se encontra no ambiente do sistema social, fora da sociedade. Mesmo assim, para ele, não existe sociedade sem seres humanos pois eles precisam existir e permanecer fora da sociedade.

Se por alguma razão o homem não pudesse falar e só existisse esse modo de comunicação, nesse caso haveriam homens sem sociedade. Então, é provado, que sem comunicação não há sociedade. Porém, a teoria não exclui completamente o homem da sociedade.

Para ele, há três tipos de sistemas sociais: as interações, as organizações e a sociedade. O primeiro deles e mais fácil é a interação. Para que ela aconteça é necessário a presença física de duas ou mais pessoas, que percebam a presença um do outro. A duração é bem curta e isso dificulta a continuidade da interação.

Ter a presença física como um pré-requisito não quer dizer que as pessoas participem da interação. Por mais estranho que possa ser entender como o elemento principal (o homem) deste sistema não faz parte do que é definido. Isso é possível por conta do fechamento operacional do sistema.

As pessoas são essenciais para a comunicação, contudo, a diferenciação acontece porque o sistema é independente, ele opera a sua maneira e isso ultrapassa a ação dos participantes nessa interação.

Nas empresas, onde há um tipo de organização, fica mais simples compreender essa autonomia da comunicação. Para que ela seja efetivada, é preciso um determinado período de tempo para indicar uma sustentação após o fim das interações.

O estabelecimento de regras e a seleção de pessoas competentes garantem a permanência de uma organização. A decisão é o tipo de comunicação mais usado nesse sistema. Por meio disso, é perceptível como a comunicação ultrapassa o homem e forma ela própria um sistema.

Uma organização toma rumos próprios, mesmo dependendo das decisões de seus integrantes, ela está acima deles. Existem regras e uma vasta memória contida em documentos, na cultura, na mente dos gerentes e que são vivenciadas diariamente. Desse modo, essas decisões que são tomadas cotidianamente, vão além das pessoas que o formam e a comunicação constitui um sistema social próprio.

A sociedade constitui o terceiro sistema social e abrange todas as comunicações produzidas e inclui as organizações e interações.

O sistema apresentado por Luhmann é autopoiético, ele mesmo produz e reproduz qualquer mínimo elemento que o constitui. Por ser fechado operacionalmente, as comunicações são produzidas somente dentro do sistema e essas mesmas comunicações produzem outras.

Por exemplo, isso pode ser comprovado numa simples interação: numa sala de aula, o professor repassa o seu conhecimento aos alunos e vice-versa. Quanto mais se fala e os alunos participam, mais possibilidades de comunicação se abrem. Se ninguém diz nada, não haverá comunicação.

O conceito de acoplamento estrutural soluciona a dúvida de como é possível haver comunicação se o homem está fora da sociedade. Simplificando, o sistema e o homem estão vinculados, significa que o ambiente (nesse caso, o homem) pode alterar a direção da operação dentro no sistema sem uma invasão direta.

O homem está acoplado ao sistema, ele pode produzir uma série de irritações, algo que perturbe, altere o sistema ou o tire de seu estado inicial. No fim, o sistema vai produzir certas ações por conta dessa mudança direcionada pelo homem. O sistema não modifica suas operações internas, ele só irá absorver e gerar, obedecendo a sua lógica a esses direcionamentos.

Entre o sistema social e o homem ocorre um tipo especial de acoplamento estrutural: a interpenetração. Esses dois sistemas dependem um do outro. Interpenetração não quer dizer que exista uma invasão, mas sim que um pode acessar a multiplicidade do outro.

Nesse caso, existe uma junção mas um depende do outro, e o fechamento operacional continua. Por exemplo, uma rede aberta de televisão que é idealizadora de um programa que visa arrecadar fundos para obras sociais. A organização é um sistema que se torna acoplado a certos segmentos da sociedade, a uma parcela da população mais carente.

Ela visualiza um investimento promissor nesse tipo de associação, por conta da relevância social e passa a investir nisso divulgando valores como solidariedade e o voluntariado. Ao mesmo tempo, esses segmentos são beneficiados pela visibilidade que alcançam. Os dois sistemas dependem um do outro, se um cresce o outro também, mas nenhum deixa de operar à sua maneira.

Essa teoria fez rememorar o Direito Penal do Inimigo, já estudado nessa obra. Jakobs exumou a teoria de Protágoras, São Tomás de Aquino, Kant, Locke e Hobbes. Para essa teoria, o delinquente, quando pratica determinados crimes graves, não deve ser considerado cidadão, pois é um câncer societário que deve ser extirpado.

A teoria de Jakobs funcionaliza não só os conceitos, dentro do sistema jurídico-penal, como também este, dentro de uma teoria funcionalista sistêmica da sociedade pois que ele trabalha com a noção de que, nos contatos sociais, só é possível orientarmo-nos se não contarmos, a cada momento, com comportamentos imprevisíveis de outra pessoa.

Assim, o ser humano cria expectativas ao estabelecê-los. Dentro dessas expectativas quanto ao comportamento, interessariam dois grupos: aquelas baseadas nas leis da natureza; e aquelas especificamente baseadas na pretensão de que os demais sigam as normas vigentes.

A separação dessas duas expectativas é atribuída por Jakobs ao conceito de ação. Chega-se, pois, ao conceito de conduta como evitabilidade individual: a ação é causação de um resultado individualmente evitável.

 Causar um resultado é gerar um mínimo de resultado externo, representado pelo movimento corporal. Assim, não se trata de resultado no sentido dos crimes materiais, mas de todos os movimentos corporais cognoscíveis em sua conformação e de suas consequências. Essa é uma das distinções entre a teoria de Jakobs e a teoria causal, cujo resultado é naturalístico.

 Jakobs trabalha o conceito de evitabilidade da conduta (ação). Quanto a esse ponto, é interessante observar que, para o seu entendimento, não interessa saber sobre o conhecimento da norma por parte do sujeito da conduta pois que, o conhecimento da norma sequer é discutido no estrato da conduta humana. O que realmente interessa no plano da ação é saber se esta é evitável. Em resumo: a ação seria a postura do sujeito em relação à motivação da norma.

 As principais críticas sofridas por essa teoria são relativas ao seu excesso de distanciamento da realidade e ao seu abuso na criação de conceito de conduta. Essa teoria não se preocupou em construir um direito penal de garantias, legitimando todo e qualquer sistema punitivo.

Podemos diferenciar os dois sistemas funcionalistas, basicamente, assim:

Funcionalismo Teleológico Funcionalismo Radical ou Sistêmico
Criador/corifeu Claus Roxin Günther Jakobs
 

 

 

 

 

Características

Preocupa-se com os fins do Direito Penal. Preocupa-se com os fins da pena.
Norteado por finalidades político-criminais. Leva em consideração somente as necessidades do sistema.
Busca a proteção dos bens jurídicos indispensáveis ao indivíduo e à sociedade. Busca a reafirmação da autoridade do Direito.
Trabalha com prevenção geral positiva (a pena deve servir como fato de inibição do crime). Trabalha com a função geral preventiva da pena.
Cria a imputação do resultado, integrando ao tipo penal. Ao descumprir a sua função na sociedade o sujeito deve ser eficazmente punido *.

* Somente dessa forma haverá a reafirmação da autoridade do Direito. É nesse ponto que se desenvolve a Teoria do Direito Penal do Inimigo. A preocupação de Günther Jakobs não é o bem jurídico indispensável à convivência social mas, sim, o sistema social e jurídico. A Lei é entendida como autoridade total.

Para a elucidação da interpretação a ser dada por cada uma das correntes funcionalistas aqui estudadas, podemos analisar um caso de furto simples de uma caneta bic despida de qualquer tipo de valor sentimental e avaliada materialmente em R$ 1,00.

Para Roxin, funcionalismo teleológico, uma caneta bic não é um bem jurídico lesado de acordo a colocar em risco o indivíduo. Para Roxin, não é crime. Para Jakobs, funcionalismo sistêmico, que leva a necessidade de proteger o sistema, se houve a violação de sua função na sociedade, pouco importa se ela é significante ou insignificante, quem a violou deve ser punido.


NOTAS

[1] Em nossa obra intitulada Fundamento do Direito Penal Mínimo: uma abordagem criminológica, publicado pela Lumen Juris, 2ª Ed., Rio de Janeiro, 2016, discorremos que após a ascensão ao poder, em 1933, pelo partido nacional-socialista, iniciou-se na Alemanha uma série de reformas que visavam ao cumprimento das promessas levadas a efeito nas campanhas eleitorais. Lembrando que, naquela oportunidade, a Alemanha já tinha sido vencida na Primeira Guerra Mundial 1914 a 1918 encontrando-se enfraquecida sob diversos aspectos, principalmente pelas condições que lhe foram impostas no tratado de Versalles. Com a ascensão de Hitler ao poder, o partido nacional-socialista tratou, imediatamente de começar a reorganizar, de acordo com seus critérios escusos, o Estado alemão, culminando, em 1944, com a edição do projeto nacional-socialista sobre o tratamento de estranhos à comunidade, que foi trazida à luz, recentemente, por meio de um trabalho incansável de pesquisa levado a efeito pelo professor Francisco Munhoz Conde, em sua obra intitulada Edmund Mezger e o Direito Penal de Seu Tempo. Tal projeto considerado como um dos mais terríveis da história do Direito Penal, propunha, dentre outras coisas: a) a castração dos homossexuais; b) a prisão por tempo indeterminado dos considerados associais, ou seja, pessoas que tivessem um comportamento  antissocial, a exemplo dos vadios, prostitutas, alcoólatras, praticantes de pequenas infrações penais, sem que houvesse necessidade, inclusive, de evitar a propagação daqueles considerados associais e inúteis para a sociedade. Hitler, em seus vários discursos antissemitas, chegou a afirmar que “uma sociedade saudável deve fazer de tudo para se purificar do mal… o que demonstrava sua vontade de purificar a raça ariana através da aniquilação de indivíduos pertencentes à subraças ou que portassem doenças, deficiências ou defeitos de personalidade. O Reichstag aprovou em 24 de maio de 1933 o Ato de Autorização pelo qual transmitia suas funções legislativas ao poder executivo – no caso Hitler. Durante o regime nazista, o Reichstag reuniu-se em torno de 12 vezes, nunca sustentou debates, votações, ou discursos — com exceção dos de Hitler –, tendo aprovado somente quatro leis: a Lei de Reconstrução de 30 de maio de 1934 — no qual abolia a autonomia dos estados da Alemanha –, e as três leis anti-semitas de Nuremberg em 15 de novembro de 1935. Hermann Göring declarou aos promotores prussianos, em 12 de junho de 1934, que “a vontade do Führer e a lei são a mesma coisa”. O próprio Hitler, após o expurgo em massa de seus inimigos na Noite das Facas Longas, em seu discurso no Reichstag denominou-se o juiz supremo do povo alemão. Hitler tinha o direito de revogar os processos criminais. Na Alemanha Nazista, os juízes eram estimulados a desrespeitar a lei em favor do nazismo; o Dr. Hans Frank, Comissário de Justiça e Líder Jurídico do Reich disse aos juristas em 1936: A ideologia nacional-socialista é o fundamento de todas as leis básicas (…), em face do nacional-socialismo não há lei independente. Ante qualquer decisão que tomardes perguntais a vós mesmos “Como decidiria o Führer em meu lugar” Em toda decisão, perguntai “Será esta decisão compatível com a consciência nacional-socialista (…) A higienização da sociedade e a busca por uma purificação ariana fez com que o Führer buscasse em um dos mais renomados professores alemães um programa de limpeza social, o qual valia-se do Direito Penal. O programa criado e denominado pelo professor Edmund Mezger de estranhos à comunidade foi desenvolvido. (…) Sabe-se que, seja na Europa ou América, toda Constituição que se preze garante aos cidadãos o princípio da legalidade e o da anterioridade, os quais preveem a impossibilidade da lei penal retroagir, gerando efeitos para fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor. No Brasil, por exemplo, conhecemos a garantia e direito de que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu ou de que não há crime sem lei anterior que o defina ou pena sem prévia cominação legal. Sabe-se que o princípio da legalidade ou da reserva legal possui uma significação mais ampla do que a simples literalidade ou formalidade do nullum crimen, nulla poena, sine lege, na medida em que a essência do princípio, ou seu aspecto material, a partir da hermenêutica constitucional, está na garantia de proteção dos cidadãos, frente à potestade punitiva estatal. Desse princípio se inferem três garantias básicas de direito material: criminal (tipicidade), penal (sanções), penitenciária (execução penal) e uma processual-jurisdição. Portanto, é o princípio da legalidade que serve de fundamento ao limite da potestade punitiva, como limite do poder político jurídico, mas não dos direitos e das garantias, do status libertatis. Dessa forma, a Constituição do Reich foi modificada por vias transversas assim que houve a assunção do poder pelos Nazi, fazendo com que o dispositivo relativo ao princípio da anterioridade e irretroatividade da norma penal criminalizadora, passasse a ter uma redação que comportasse interpretações diversas e liberais. Passou-se a prever que, na Alemanha Nazista, considerava-se crime tudo aquilo que a sã consciência do povo alemão disser que seja. Ora, a sã consciência do povo alemão era aquela que o Führer tivesse. Naquela época, determinadas pessoas eram apontadas como perigosas, a exemplo do que ocorria com os delinquentes habituais, e sobre elas recaía uma espécie de tratamento, que podia, segunda sua visão, curá-los, aplicando-lhes medidas de internação por tempo indeterminado, inclusive nos conhecidos campos de concentração, ou, quando fossem reconhecidamente entendidos como incuráveis, condenados à morte, ou ainda, em algumas situações, utilizados como carne de canhão, pessoas que, durante a Segunda Guerra Mundial, eram colocadas no front de batalha. Conforme as lições de Rogério Greco, essas medidas que explicitamente atropelavam o princípio da dignidade da pessoa humana, justamente por desconsiderá-las como pessoa, lembrando muito com o que Jakobs pretendia fazer com seu Direito Penal do Inimigo, desconsiderando o inimigo como um cidadão. Munhõz Conde, dissertando sobre o princípio da culpabilidade, concebido durante os anos 20, do século passado, a fim de chegar a um conceito de periculosidade, desenvolvido na Alemanha durante o período do regime nacional-socialista, assevera que não se pode discutir que o conceito de culpabilidade, tenha sido uma das conquistas mais importantes da dogmática jurídico-penal daquela época. Munhõz Conde explica: Entendido como garantia e limite frente ao poder punitivo do Estado, é considerado hoje como um dos princípios fundamentais de um direito penal democrático e respeitoso como a dignidade humana. Mas um sistema estritamente dualista como o que se forjou na republica de Weimar, no qual apena limitada por sua culpabilidade podia ser substituída ou complementada por uma medida de segurança de duração indeterminada, fundamentada em um conceito tão vago e perigoso como o de periculosidade, traduz um conceito de Direito Penal muito vinculado às teses de amigo-inimigo tão caras ao Estado nacional-socialista(…) (MUNOZ Conde, Francisco. Edmund Mezger e o direito penal de seu tempo, p. 64-65). Por fim, é fácil perceber a semelhança entre o que pretende Jakobs com a sua distinção amigo-inimigo, ao projeto desenvolvido por Mezger durante o regime nazista capitaneado por Hitler.


REFERÊNCIAS

Galvão, Fernando. Direito Penal – parte geral. Belo Horizonte: D`Plácido, 2016.

Rodrigo Murad do Prado

Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires. Mestre em Direito. Criminólogo. Defensor Público.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo