Fundada suspeita?
O Código de Processo Penal elenca como requisito basilar (conditio sine qua non) para a realização da famigerada busca domiciliar a existência de fundadas razões e para a busca pessoal a existência de fundada suspeita.
Vejam bem. Fundadas razões ou suspeitas não se confundem com mera e qualquer suspeita ou exercício de achismo. Não se confundem com opiniões e preconceitos. A lei, neste ponto, é clara. Quanto à busca domiciliar, devem existir fundadas razões que a autorizem, a teor do que dispõe o §1º do artigo 240 do CPP:
Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.
§1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:
a) prender criminosos;
b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;
c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;
d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;
e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;
f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;
g) apreender pessoas vítimas de crimes;
h) colher qualquer elemento de convicção.
Sabe-se que, para a busca domiciliar, salvante em casos de flagrante delito, exige-se a prévia existência de ordem judicial, afinal, prevê a Constituição da República, em seu artigo 5º, inciso XI, que a
casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
No que concerne à busca pessoal, vulgarmente conhecida como abordagem ou revista policial sobre o cidadão, exige a legislação processual penal pátria a existência de fundada suspeita de que o sujeito oculte consigo arma proibida ou os objetos mencionados nas letras “b” a “f” e letra “h” do §1º do artigo 240 do CPP (acima transcrito). É o que dispõe, literalmente, o §2º do artigo 240 do Diploma em voga:
§2o Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.
Sabe-se que é princípio básico da hermenêutica que a lei não contém palavras e disposições inúteis. Sabe-se, de outra banda, que, por força do princípio da legalidade, aos particulares é permitido fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, ao passo que aos agentes públicos somente é dado fazer aquilo que a lei, expressamente, autorize.
Dentro desta ótica, veja-se que a determinação do que sejam fundadas razões ou fundadas suspeitas não está sujeita a critérios de discricionariedade, oportunidade e conveniência da autoridade policial.
Vale dizer: as autoridades policiais não podem sair por aí invadindo residências ou abordando pessoas nas ruas, simplesmente, porque desejam.
Esta atitude suspeita deve ser fundamentada, justificada, sob pena de ilegalidade do ato. A definição de fundada razão ou suspeita deriva da legislação e não do íntimo de cada agente policial.
Trata-se de uma questão de segurança jurídica. Não fosse assim, isto é, não derivasse de lei os casos autorizadores de busca domiciliar ou revista pessoal, a insegurança, em detrimento das liberdades pessoais, reinaria, afinal, cada agente policial, dentro de sua subjetividade e de peculiar interpretação dos fenômenos da vida, teria uma conceituação e “justificação” diversa do que seria atitude suspeita, onde a lei não seria a lei, senão a subjetividade de cada agente público, que poderia perfeitamente dizer “a lei sou eu!”.
Hobbes nos ensina que o Estado, o “soberano”, é constituído pela expressão dos direitos dos cidadãos; assim sendo, não se revela legítimo fazer “valer a lei”, o poder estatal, à custa dos direitos dos cidadãos, mediante a violação deles. Ora: o Estado existe, justamente, para garanti-los e não para violá-los!
Não obstante, as disposições do Código de Processo Penal, acerca da fundada razão, para a busca domiciliar, e da fundada suspeita, para a busca pessoal, na prática, são pouco observadas.
No mundo da realidade, deparamo-nos com um verdadeiro subjetivismo e discricionariedade nas abordagens policiais (um verdadeiro poder desenfreado), lastreados em estereótipos, conjecturas e achismos, ao revés de fundadas circunstâncias, razões e suspeitas.
Luis Fernando Veríssimo, com grande maestria, no texto “Atitude Suspeita”, demonstra a temeridade de se deixar a definição do que seja atitude suspeita ao subjetivismo de cada pessoa:
Sempre me intriga a notícia de que alguém foi preso “em atitude suspeita”. É uma frase cheia de significados. Existiriam atitudes inocentes e atitudes duvidosas diante da vida e das coisas e qualquer um de nós estaria sujeito a, distraidamente, assumir uma atitude que dá cadeia!
– Delegado, prendemos este cidadão em atitude suspeita.
– Ah, um daqueles, é? Como era a sua atitude?
– Suspeita.
– Compreendo. Bom trabalho, rapazes. E o que é que ele alega?
– Diz que não estava fazendo nada e protestou contra a prisão.
– Hmm. Suspeitíssimo. Se fosse inocente não teria medo de vir dar explicações.
– Mas eu não tenho o que explicar! Sou inocente!
– É o que todos dizem, meu caro. A sua situação é preta. Temos ordem de limpar a cidade de pessoas em atitudes suspeitas.
– Mas eu estava só esperando o ônibus!
– Ele fingia que estava esperando um ônibus, delegado. Foi o que despertou a nossa suspeita.
– Ah! Aposto que não havia nem uma parada de ônibus por perto. Como é que ele explicou isso?
– Havia uma parada sim, delegado. O que confirmou a nossa suspeita. Ele obviamente escolheu uma parada de ônibus para fingir que esperava o ônibus sem despertar suspeita.
– E o cara-de-pau ainda se declara inocente! Quer dizer que passava ônibus, passava ônibus e ele ali fingindo que o próximo é que era o dele? A gente vê cada uma…
– Não senhor delegado. No primeiro ônibus que apareceu ele ia subir, mas nós agarramos ele primeiro.
– Era o meu ônibus, o ônibus que eu pego todos os dias para ir para casa! Sou inocente!
– É a segunda vez que o senhor se declara inocente, o que é muito suspeito. Se é mesmo inocente, por que insistir tanto que é?
– E se eu me declarar culpado, o senhor vai me considerar inocente?
– Claro que não. Nenhum inocente se declara culpado, mas todo culpado se declara inocente. Se o senhor é tão inocente assim, por que estava tentando fugir?
– Fugir, como?
– Fugir no ônibus. Quando foi preso.
– Mas eu não estava tentando fugir. Era o meu ônibus, o que eu tomo sempre!
– Ora, meu amigo. O senhor pensa que alguém aqui é criança? O senhor estava fingindo que esperava um ônibus, em atitude suspeita, quando suspeitou destes dois agentes da lei ao seu lado. Tentou fugir e…
– Foi isso mesmo. Isso mesmo! Tentei fugir deles.
– Ah, uma confissão!
– Porque eles estavam em atitude suspeita, como o delegado acaba de dizer.
– O quê? Pense bem no que o senhor está dizendo. O senhor acusa estes dois agentes da lei de estarem em atitude suspeita?
– Acuso. Estavam fingindo que esperavam um ônibus e na verdade estavam me vigiando. Suspeitei da atitude deles e tentei fugir!
– Delegado…
– Calem-se! A conversa agora é outra. Como é que vocês querem que o público nos respeite se nós também andamos por aí em atitude suspeita? Temos que dar o exemplo. O cidadão pode ir embora. Está solto. Quanto a vocês…
– Delegado, com todo o respeito, achamos que esta atitude, mandando soltar um suspeito que confessou estar em atitude suspeita é um pouco…
– Um pouco? Um pouco?
– Suspeita.
Você leu esse texto até o fim? Achei isso um tanto… suspeito!
Afinal, porque alguém que não fosse suspeito perderia o seu tempo lendo um texto chamado Fundada suspeita?
No mínimo… suspeito.
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