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A fundamentação de ódio e a tirania jurisdicional

Sabemos que hoje em dia, infelizmente, o discurso de ódio tem norteado muito das discussões em nossa sociedade.

Por óbvio que no campo jurídico isto não se dá de forma diversa. Premissas sustentadas em percepções morais, eivadas de ideologias e componentes religiosos norteiam determinadas formas de pensar, que se fecham por completo ao pensamento diverso.

Um ideal de menosprezo por aquele que ousa discordar de um ponto de vista já internamente consolidado faz com que qualquer situação que venha a questionar aquelas “verdades” seja merecedor de qualquer trato pejorativo, quando não agressivo.

O discurso de ódio afasta-se do enfrentamento do argumento e apega-se em questões pessoais, muitas vezes explicitando todo um componente preconceituoso em relação àquele que traz uma forma de pensar diferente.

Não há espaço argumentativo, tampouco diálogo que floresça em solo contaminado por visões extremistas e radicais, pois o diferente incomoda aqueles que pensam estar acima dos demais e que se julgam corretos demais para suportarem questionamentos de quem está abaixo deles.

Portanto, independente da forma de pensar, dos argumentos a serem construídos, não podemos descambar o discurso jurídico para o campo do enfrentamento odioso, maculado por vaidades e preconceitos que reduzem complexos problemas sociais a picuinhas pessoais.

Recebi muito triste uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde o Desembargador, ao desacolher Embargos Declaratórios opostos pela Defensoria Pública, usa termos como “parece ser piada de mau gosto”, a “ridícula tese”, revelando a “ignorância  jurídica”, finalizando com a frase:

fico com a impressão de que os defensores públicos, tal qual "advogados de porta de cadeia", estão procurando, por vários meios inidôneos atrasar a execução de uma sentença condenatória.

Não adentrarei ao mérito do recurso, por desimportar. Não trarei a identificação dos envolvidos por respeito.

Talvez o julgamento do Desembargador até esteja correto, o grave e inaceitável fora a forma pelo qual este desacolhimento do recurso se apresentou, revelando aquilo que norteia a decisão do Magistrado e que, talvez, por muito tempo esteve velado em decisões que se limitavam a reproduzir o parecer do Ministério Público ou a sentença de primeiro grau.

O discurso de ódio ao pensamento diverso, quando realizado nos autos de processos judiciais, por aquele que deve garantir a aplicação da lei e dos dispositivos constitucionais é grave demais para passar despercebido.

Obviamente que o Magistrado poderia discordar frontalmente dos argumentos trazidos pelo Defensor Público, mas que o fizesse com os fundamentos que, certamente, possui para repudiar tanto as alegações.

Não podemos esquecer que são pedidos de advogados, muitas vezes assim tratados, que fazem com que o estado de coisas ilegal e inconstitucional seja alterado.

Isto fora assim em diversos episódios históricos, desde o enfrentamento à períodos ditatoriais, até a derrubada de entendimentos e legislações que contrariavam à Constituição, passando pelo respeito à dignidade da pessoa humana, direito à saúde, à educação e tantas outras situações levadas ao judiciário por advogados e defensores públicos em todos os ramos do Direito.

A crítica ao ocorrido não perpassa pelo entendimento do Magistrado, mas sim pela sua forma de decidir, que viola, inclusive, a Lei Orgânica da Magistratura.

Já me deparei com inúmeros Magistrados, muito dos quais discordo frontalmente de sua maneira de pensar e conceber o Direito, mormente o Penal e Processual Penal, mas nunca presenciei um juiz capacitado e qualificado desrespeitar ou menosprezar quaisquer dos outros atores judiciais.

A visão ensimesmada que não tolera o questionamento e precisa vir eivada em ódio para se justificar é própria dos tiranos, aqueles que se julgam acima das críticas e escondem-se em sua toga para o exercício das mais covardes arbitrariedades.

Lembro da mensagem do grande Elias Mattar Assad, presidente nacional da ABRACRIM, que certa vez, com a maestria que lhe acompanha sempre, disse que o que incomoda o tirano é alguém conhecer seus limites.

O juiz que pretende atuar de forma autoritária terá apenas no Advogado alguém disposto a impedi-lo, alguém que saberá em que momento ele estará se excedendo e o que fazer para impedir que aquilo prossiga.

Tiranos detestam aqueles que conhecem os seus limites.

Não podemos compactuar com a tirania jurisdicional que veja a parte e seu Defensor desta forma, pois isto é o triunfo do discurso odioso. Onde há o discurso de ódio, não há diálogo. Sem diálogo, não há um devido processo legal. E sem devido processo legal, não há democracia que se sustente.

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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