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A ausência de fundamentação das decisões que ratificam o recebimento da denúncia

A ausência de fundamentação das decisões que ratificam o recebimento da denúncia

Com o advento da Lei 11.719/2008 o Código de Processo Penal sofreu diversas mudanças, sobretudo nos procedimentos processuais. A partir das alterações trazidas pela referida Lei, foi concedido ao acusado, após o recebimento da denúncia, à oportunidade de apresentar a resposta à acusação (arts. 396 e 396-A do CPP), na qual pode ser alegado tudo o que interesse para sua defesa, inclusive juntar documentos, especificar as provas que pretende produzir, bem como arrolar testemunhas.

Depois de apresentada a resposta à acusação, os autos do processo são encaminhados ao juiz competente para que ele analise as matérias aventadas pela defesa e verifique se é ou não o caso de dar prosseguimento à ação penal, isto é: verificar se há justa causa; se não é o caso de absolver o réu sumariamente; se a denúncia de fato está devidamente elaborada (art. 41 do CPP); etc.


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Feito isso, se o magistrado entender por bem que as matérias alegadas pela defesa do acusado não devem ser acolhidas, ele deve ratificar o recebimento da denúncia fundamentando o porquê que as teses não devem ser acolhidas, em homenagem ao princípio da motivação das decisões judiciais estampado no art. 93, IX, da Constituição Federal:

todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Ocorre que na prática o juiz nem sempre fundamenta a decisão que ratificou o recebimento da denúncia. Na maioria das vezes, se limita em afirmar que por não ser o caso de absolver sumariamente o acusado, deve-se manter o recebimento da denúncia realizado às fls. “XX”, uma vez que há indícios de autoria e materialidade, bem como designa audiência de instrução.

É inequívoco que essa prática está totalmente destoada do que prevê a legislação, principalmente após as mudanças legislativas trazidas por meio da Lei n.º 11.719/2008.

Não é à toa que o legislador se preocupou em conceder ao réu a oportunidade de apresentar a resposta à acusação depois que a denúncia é recebida pelo juiz, esse direito visa garantir a ampla defesa e também dar a chance de o acusado mostrar ao magistrado que a acusação que pesa em seu desfavor não condiz com a realidade fática.

Assim, caso o juiz de base entenda por bem dar prosseguimento ao feito, ele deve fundamentar por qual motivo as teses aventadas pela defesa estão sendo afastadas. A decisão que ratifica o recebimento da denúncia é tão importante quanto a que a recebeu pela primeira vez.

A resposta à acusação não pode ser vista como mera formalidade; não pode ser tratada como uma peça que possui a única finalidade de arrolar as testemunhas da defesa. A resposta à acusação deve ser minuciosamente analisada pelo juiz competente, pois só assim poderá ser verificada a necessidade de dar andamento ao processo criminal.

Sobre a importância da decisão que analisa a resposta à acusação, é válido citar trecho de um brilhante voto proferido pelo ministro Teori Zavascki – in memorian:

A decisão que aprecia a resposta à acusação prevista no art. 396-A do CPP é, sem dúvida alguma, de suma importância para o resguardo de direitos fundamentais do denunciado. É que nesse momento processual a defesa está autorizada a invocar, desde logo, questões aptas a impedir o seguimento de um processo criminal temerário (STF, RHC 120267 / SP, rel. Min. Teori Zavascki, DJ 18/03/2014)

Exatamente! É nesse momento que o juiz terá condições de verificar a necessidade de manter a acusação que pesa em desfavor do denunciado, por isso a análise deve ser devidamente feita e a decisão suficientemente fundamentada.

Caso isso não ocorra, na prática o melhor caminho a ser tomado é a impetração de habeas corpus ao Tribunal de Justiça competente e, se porventura a ilegalidade for chancelada pelos desembargadores, o defensor deverá recorrer aos Tribunais Superiores (STJ e STF).

Por fim, seguem precedentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com a intenção de ilustrar situações em que os desembargadores reconheceram a nulidade de decisões que ratificaram o recebimento da denúncia de forma desfundamentada:

  • HC n.º 2100527-38.2014.8.26.0000

A decisão é padronizada, limitando-se a afirmar que os argumentos defensivos carreados nas defesas preliminares não autorizam a absolvição sumária.

Sua simplicidade subverte o sistema processual por ignoraras teses defensivas da resposta à acusação, violando a garantia do devido processo legal e negando vigência ao rito processual delineado pela reforma operada pela Lei 11.719 de 2008.

(…) A ratificação do recebimento da denúncia, portanto, é decisão de conteúdo decisório (já que não se pode cogitar “decisão que não decide”) e, como tal, deve ser devidamente fundamentada por mandamento constitucional: artigo 93, IX (“todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade […]”).

Considero inadequado equiparar decisão que aprecie manifestação defensiva em que se pode “arguir preliminares e alegar tudo o que interesse à sua defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas […]” (artigo 396-A do Código de Processo Penal) a um despacho de mero expediente. Fosse assim, a manifestação defensiva seria completamente inútil.

(…) Em face do exposto, concedo a ordem para anular a decisão que ratificou o recebimento da denúncia por falta de fundamentação, determinando a prolação de outra em seu lugar, analisando, ainda que de forma concisa, todas as teses aduzidas por todas as defesas. (HC n.º 2100527-38.2014.8.26.0000, TJSP, Des. Rel. Otávio de Almeida Toledo, DJe 22/08/2014)

  • HC n.º 0038937-60.2015.8.26.0000

A esta altura, imperioso salientar que, de acordo com a nova sistemática processual, o direito à resposta preliminar conferido à defensoria tem como contrapartida o dever do magistrado de apreciar, fundamentadamente, as preliminares e alegações nela contidas.

(…) Dessarte, forçoso reconhecera nulidade do feito, em virtude da ausência de fundamentação do despacho que negou a absolvição sumária.

(…) Ante o exposto, concede-se a presente ordem, a fim de anular o feito originário, a partir da decisão que ratificou o recebimento da denúncia (fls. 67), para que outra seja proferida, apreciando-se as teses expendidas em defesa preliminar. (HC n.º 0038937-60.2015.8.26.0000, TJSP, Rel. Min. Guilherme G. Strenger, DJe 16/09/2015)

Gustavo dos Santos Gasparoto

Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduando em Ciências Criminais. Advogado criminalista.

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