Fundamentos epistemológicos do Direito Penal e o STF

Fundamentos epistemológicos do Direito Penal e o STF

Na última terça-feira (30/06), o ministro Gilmar Mendes absolveu de forma sumária uma mulher que furtou um pedaço de picanha e outras mercadorias no Rio de Janeiro. No mesmo dia, a ministra Rosa Weber negou um habeas corpus a uma jovem que furtou dois xampus. Com isso, surge a dúvida: qual critério é usado pelos ministros do STF no momento de proferir uma sentença?

O ministro Gilmar Mendes fundamenta sua decisão alegando que:

Não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz movimentam-se no sentido de atribuir relevância à hipótese de furto de uma peça de picanha.

Segue nesta mesma linha e conclui dizendo que:

O sistema de penalizações somente deve atuar para proteção dos bens jurídicos de maior relevância e transcendência para a vida social. (…) “ão cabe ao Direito Penal, como instrumento de controle mais rígido e duro que é, ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.

Contudo, a Ministra Rosa Weber pensa diferente, e alega que como tinha antecedentes, a ré mostrava que não conseguia viver em sociedade, e por este fato a sanção penal seria justa e adequada.

Embora isso tudo pareça mais uma confusão idiossincrática da nossa Suprema Corte, cabe destacarmos que os ministros reabriram um dos mais densos debates na teoria do delito moderna, que é sobre a teoria funcionalista do delito, na qual afirma que o sistema jurídico-penal não deve vincular-se a dados ontológicos (ação, causalidade, estruturas lógico-reais, entre outros), mas sim orientar-se exclusivamente pelos seus fins.

Luís Greco, um dos maiores nomes do direito penal da nossa geração, afirma que na teoria funcionalista:

São retomados, portanto, todos os avanços imorredouros do neokantismo: a construção teleológica de conceitos, a materialização das categorias do delito, acrescentando-se, porém, uma ordem a esses pontos de vista valorativos: eles são dados pela missão constitucional do direito penal, que é proteger bens jurídicos através da prevenção geral ou especial. Os conceitos são submetidos à funcionalização, isto é, exige-se deles que sejam capazes de desempenhar um papel acertado no sistema, alcançando conseqüências justas e adequadas.

Para a teoria funcionalista, é importante sabermos quando se mostra necessária e legítima a pena por crime doloso. Sobre este dilema, dois nomes ganharam significante destaque: Claus Roxin, autor da teoria funcionalista teleológica e o  Günther Jakobs, autor da teoria funcionalista-sistêmica.

A teoria do Roxin consiste numa teoria de aspecto político-criminal, subsidiária de bens jurídicos. Tal pensamento pode ser entendido como uma síntese do ontológico com o valorativo, devendo o jurista proceder dedutiva e indutivamente ao mesmo tempo. Logo, o trabalho do dogmático é identificar que valoração político-criminal subjaz a cada conceito da teoria do delito, e funcionaliza-lo, construí-lo e desenvolvê-lo de modo a que atenda essa função da melhor maneira possível dentro do próprio sistema.

Para Roxin, a culpabilidade, substrato da teoria analítica do crime, era dividida em imputabilidade, potencial consciência da ilicitude, exigibilidade de conduta diversa e acrescenta, também, o elemento da necessidade da pena. Em Roxin, a culpabilidade exerce uma funcionalidade própria.

Luís Greco afirma que esta hercúlea tentativa do Roxin de sintetizar dedutível com o indutivo consiste num fecundo trabalho, pois se esforça por atender, de uma só vez, as exigências de segurança e de justiça, ambas inerentes à idéia de direito.

Para Roxin, o sistema jurídico-penal deve existir somente com um fim: a proteção dos bens jurídicos mais relevantes.

Contudo, Günther Jakobs elabora uma tese diferente da tese levantada por Roxin. Para Jakobs o direito penal deve existir para garantir a efetividade, eficácia e legitimidade e respeito às normas do próprio sistema penal. Sob estes termos Jakobs fundamenta a teoria funcionalista-sistêmica.

Jakobs, com base em Luhmann, afirma que são as expectativas e as expectativas de expectativas que orientam o agir e o interagir dos homens em sociedade, reduzindo a complexidade, tornando a vida mais previsível e menos insegura. Pela necessidade de garantir essas expectativas é que surgem os sistemas sociais, que fornecem à sociedade formas de condutas específicas e pontuais.

Jakobs entendia que as expectativas normativas não se podem decepcionar sempre, pois acabam perdendo a credibilidade. Daí, segundo o professor Luís Greco, porque a necessidade de um “processamento das decepções”: a decepção deve gerar alguma reação, que reafirme a validade da norma. Uma dessas reações é, segundo Günther Jakobs, a sanção.

O direito como sistema social é composto de normas, que, quando violadas, geram decepções, as quais por sua vez tornam patente a necessidade de reafirmação das expectativas. No direito penal, isto ocorre através da pena, que é definida por Jakobs como “demonstração da vigência da norma às custas de um sujeito competente”.

Para Jakobs, a funcionalização do sistema consiste conhecer a necessidade de punição para reafirmação da validade da norma violada e reestabilizar o sistema como um todo.

Ao que parece, os ministros levantaram um dos mais intrincados paradigmas da teoria do delito moderna, sustentando posições diversas que, ao contrário do comentado vulgarmente internet, não possui consenso e está longe de ser pacificado. Estamos diante de duas teorias de dois dos maiores autores do direito penal a nível mundial. Não é prudente, por ora, afirmar inequivocamente qual teórico tem razão. O que se pode fazer, no entanto, é compreender que tanto Weber quanto Gilmar, possuem fundamento para ambas as sentenças.


REFERÊNCIAS

ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal

GRECO, Luís. Introdução à dogmática funcionalista do delito – Em comemoração aos trinta anos de “Política criminal e sistema jurídico-penal” de Roxin.

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