Fundamentos para uma responsabilidade penal das pessoas jurídicas
Por Douglas Rodrigues da Silva
Como sobejamente levantado em colunas anteriores, a sociedade pós-industrial caracteriza-se como uma sociedade de “objetiva” insegurança, pois os ditos efeitos nocivos do progresso são desconhecidos ou manifestar-se-ão anos depois. Nesse contexto, a problemática vai além da produção dos riscos, mas também abarca sua distribuição.
Ao contrário da sociedade do século XX, que via na ideia do risco permitido o limite dogmático do direito penal, especialmente na órbita de incriminação de condutas, a sociedade pós-moderna busca reduzir a fronteira de tais riscos tidos como essenciais às atividades econômicas em prol da segurança da coletividade. Isto porque a nova forma de compreender a sociedade e os seus atores levou a mudança da fórmula de cálculo do risco tolerado, resumida na parêmia “os custos compensam os benefícios”.
A segurança, pois, se converte em pretensão social a qual se supõe que o direito penal (ou o Estado, em sentido lato) deve oferecer resposta. Por conseguinte, surgem demandas de ampliação da proteção penal, com o fim de por termo à angústia derivada da insegurança e o direito penal passa a ter a missão de gerar consenso de valores e reforçar a comunidade.
É nesse contexto expansionista, com a contemplação de novos bens jurídicos penais, cada vez mais desvinculados de pessoas individualizadas e passando para pessoas indeterminadas, que surge o apelo pela responsabilização penal da pessoa jurídica.
A sensibilidade acentuada aos riscos da atividade econômica, por suposto, haveria de voltar a dogmática jurídico-penal aos entes coletivos: a uma porque, por excelência, são os verdadeiros atores econômicos do século XXI, dominando economias superiores a Estados-Nações; a duas porque são os condutores dos avanços tecnológicos, sendo os responsáveis pela maior parcela de produção dos riscos sociais.
Tanto é assim, que, por meio da Constituição da República de 1988 e da Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), o legislador pátrio previu expressamente a figura da pessoa jurídica como sujeito ativo de infrações penais.
O problema que hoje avulta na seara jurídico-penal está no momento em que se pode afirmar a culpabilidade da pessoa jurídica.
A teoria construtivista, proposta por Carlos Gómes-Jara Díez (2006), segue a lógica construída pela filosofia sistêmica de Luhmann, na qual a pessoa jurídica consistiria num sistema autopoiético, ou seja, dependente apenas de sua própria estruturação para desenvolver-se. Com efeito, a culpabilidade do ente coletivo ou moral somente se poderia afirmar com a indagação acerca de sua própria estrutura e cultura organizacional, fincando no Compliance (ou melhor, na falta dele) o fundamento do juízo de reprovação da pessoa jurídica e, por conseguinte, sua responsabilização penal.
Para os construtivistas, o defeito na organização empresarial, evidenciado pelo menoscabo de um programa efetivo de Compliance, afirma a criação de um risco não permitido e autoriza a intervenção penal.
Em linha semelhante, temos a construção do penalista argentino David Baigún (LOUREIRO; GUARAGNI, 2012), que pugna pela dupla imputação no caso de delito praticado por um ente coletivo. Segundo o autor, a responsabilidade penal deve seguir por dois planos: o primeiro deles deve ser a responsabilização da pessoa jurídica como ente autônomo; enquanto o segundo prevê a responsabilização dos gestores, pessoas físicas, responsáveis pelas tomadas de decisão do ente coletivo.
A responsabilidade do ente coletivo, entretanto, sob os auspícios dessa concepção, estaria baseada não na culpabilidade do ente coletivo, mas na sua responsabilidade social. David Baigún leciona que a culpabilidade não se aplicaria à pessoa jurídica haja vista o caráter ficcional desta.
Pois bem.
Para o jurista argentino, somente se pode falar em conduta da pessoa jurídica (dita como ação institucional) quando se atendem, cumulativamente, a três requisitos:
a) Regulação normativa: referente ao plano normativo de funcionamento da pessoa jurídica, ou seja, quanto às normas de constituição e desenvolvimento das atividades e, sobretudo, a quem incumbe a tomada de decisão e representação da mesma;
b) Organização: para que se possa falar em organização, David Baigún, valendo-se dos conceitos de Felipe Fucito, assevera que deve ser constatada a existência de uma coletividade humana, um conjunto de fins racionais, a sistema de comunicação institucionalizada, sistema de poder e conflito interno (aqui no sentido de conflito quanto às expectativas de recompensas e discordâncias quanto aos interesses econômicos);
c) Interesse econômico: no sentido de ganho ou benefício.
Em suma, a ação institucional seria “o produto da decisão dos órgãos do ente coletivo associada ao uso dos mecanismos estatutários” (LOUREIRO; GUARAGNI, 2012).
Esse sistema, impende destacar, não se confunde com a responsabilidade por ricochete, em que a responsabilização do ente coletivo fica condicionada à responsabilização da pessoa física. O que se prevê, em sede de ação institucional, é justamente a responsabilização autônoma do ente coletivo e da pessoa física que agiu.
A grande crítica que se faz a tais concepções reside no seu caráter de dependência à culpabilidade dos entes físicos que compõem a pessoa jurídica. Não há, pois, uma desvinculação da pessoa jurídica das pessoas físicas, aproximando-se da corrente da responsabilidade por ricochete (BUSATO, REINALDET, 2015, p. 42).
Outro ponto relevante e merecedor de crítica, especialmente a Gómez-Jara, é a construção do compliance como exculpação. Primeiro porque tal “facilidade” jamais se aplicaria a uma pessoa física, por exemplo, e, segundo, em virtude que constituiria uma exculpante moral (BUSATO, REINALDET, 2015, p. 50).
Salta aos olhos também, no que tange ao ricochete, o problema da teoria quanto aos atos complexos, nos quais a conduta do último subordinado geraria a responsabilidade do presidente da empresa, sem ele mesmo saber, efetivamente, o que ocorreu no início da cadeia causal. Exigir-se-ia dele um papel que lhe descabe, sendo responsabilizado objetivamente.
Outro ponto está no aspecto processual, o interrogatório da empresa seria feito pelo também correu. Como instruir?
Por isso, parte da doutrina adota uma teoria “autônoma” de responsabilização da pessoa jurídica, afastando o ricochete e superando as críticas às teorias baseadas em organização e programas de compliance. Esse modelo parte da ação significativa, pelo qual conduta não é o fazer, mas o significado do fazer– ainda mais porque a pessoa jurídica nunca terá um fazer final. A conduta torna-se algo puramente interpretativo a partir da linguagem pública, que altera o complexo interpretativo. O agir é um agir interpretativo.
A conduta, em seu viés significativo, não deve ser analisada sob o prisma do que ela é (ser), mas sob o olhar do que ela significa. A ação significativa portanto se exprime na parêmia “tipo de ação”. É dizer, o que se busca não é a ação calcada em estruturas lógico-objetivas, mas a ação que corresponde a uma hipótese descrita na norma, em cujo conteúdo deve ser possível se inferir uma “pretensão de relevância” (cabendo observar se a conduta adéqua-se à descrição da norma incriminadora) e uma “pretensão de ofensividade” (pela qual se constata a efetiva ofensa ao bem jurídico tutelado). “A principal inovação desse modelo consiste em deixar de considerar a ação como algo que os homens fazem e passar a considerá-la como o significado do que os homens fazem” (BUSATO, 2015, p. 271).
Ademais, “a percepção do significado não provém de uma realidade do sujeito (interna) nem tampouco do objeto (externa), mas da inter-relação entre eles” (BUSATO, 2015, p. 272).
Posto isso, é de se ver que a estruturação da responsabilidade penal da pessoa jurídica sobre conceitos herdados do finalismo não possibilitam uma “responsabilidade autônoma”. Ao contrário. Apenas reforçam a necessidade da demonstração da culpabilidade das pessoas físicas para se afirmar a culpabilidade do ente coletivo.
É, pois, por meio do manejo dos conceitos de ação significativa que se permite a responsabilidade autônoma da corporação, calcando a teoria do delito em aspectos normativos e mais próximos da função do direito penal como protetor subsidiário de bens jurídicos.
REFERÊNCIAS
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
BUSATO, Paulo César; REINALDET, Tracy Joseph. Crítica ao uso dogmático do compliance como eixo de discussão de uma culpabilidade de pessoas jurídicas. In: BUSATO; Paulo César; GUARAGNI, Fábio André, DAVID, Décio Franco. (Org.). Compliance e Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2015, v. 1, 37-69.
DÍEZ, Carlos Gómez-Jara. Autoorganización empresarial y autorresponsabilidad empresarial: Hacia una verdadera responsabilidad penal de las personas jurídicas. Revista electrónica de ciencia penal y criminología, n. 8, p. 5, 2006.
LOUREIRO, Maria Fernanda; GUARAGNI, Fábio André. A lei 9605/98 e o modelo de imputação do crime à pessoa jurídica: estudo de casos. In: CONPENDI/UFF (org.); COSTA, Rodrigo de Souza; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna; PIRES, Wagner Ginotti. Direito Penal e Criminologia. Florianópolis: FUNJAB, 2012. Disponível aqui.