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O futuro incerto da justiça penal internacional

O futuro incerto da justiça penal internacional

Nos últimos dias, a comunidade internacional tem acompanhado com surpresa e apreensão os anúncios de países africanos de que irão se retirar do Estatuto de Roma de 1998, tratado que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI). Burundi, África do Sul e Gâmbia anunciaram recentemente que denunciarão ao Estatuto em razão da excessiva interferência do TPI nos assuntos internos e da seletividade da jurisdição do Tribunal.

Desde a criação do TPI em 1998, o continente africano foi considerado o maior apoiador do Tribunal, contando com 34 países que ratificaram o Estatuto de Roma (atualmente são 124 Estados membros do TPI). Devido à História recente do continente, que envolve massacres perpetrados pelas potências coloniais, guerras civis pós-independência e violência étnica, a África procurou reforçar a o paradigma da justiça penal internacional na expectativa de que se garantisse um mecanismo que evitasse a impunidade dos graves crimes contra os direitos humanos.

Estados-Partes do TPI, como República Democrática do Congo, Uganda, República Centro-Africana e Mali pediram pela intervenção do Tribunal (nos termos do artigo 13(a) do Estatuto), a fim de que a justiça internacional julgasse os perpetradores de crimes contra a Humanidade e crimes de guerra cometidos nos conflitos internos que há anos assolam os esses países.

Considerando a falta de recursos materiais para conduzir as investigações e julgamentos e diante do fato de que líderes de milícias que lutam pela derrubada do governo central frequentemente recebem apoio logístico ou financeiro de outros países vizinhos, tornando mais difícil sua prisão, os países citados enviaram ao TPI pedido de abertura de investigação para que o Tribunal pudesse auxiliar o Estado a trazer justiça às vítimas, cumprindo com o princípio da complementaridade de jurisdição encartado nos artigos 1º e 17 do Estatuto e com o dever de investigar os crimes internacionais.

No caso de Sudão e Líbia, o pedido de abertura de investigação foi feito ao Procurador junto ao TPI pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Embora não sejam Estados-Partes do Estatuto de Roma, os dois países africanos se viram envolvidos pela jurisdição do Tribunal a partir do envio dos casos por resolução do Conselho de Segurança, nos termos do artigo 13(b) do Estatuto.

No caso de Sudão, o pedido de abertura de investigação (realizado em 2005) foi aceito pelo TPI para apurar genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra na região de Darfur, enquanto que no caso da Líbia (pedido feito em 2011) foi autorizada a investigação para apurar o cometimento de crimes contra a Humanidade. Em ambos os casos, o TPI determinou a prisão cautelar dos chefes de Estado, por entender que havia indícios de quem teriam ordenado os crimes e uma vez que perante o TPI as imunidades pessoal e funcional não podem ser opostas, como se vê do artigo 27 do Estatuto. Omar Al Bashir, presidente sudanês ainda em exercício, está com mandado de prisão pendente de cumprimento desde 2009, enquanto que Muammar Gaddafi acabou sendo derrubado do governo e executado pelos dissidentes em 2011.

Em 2010, o gabinete do Procurador junto ao TPI, seguindo a prerrogativa conferida pelo artigo 13(c) do Estatuto, requereu proprio motu a abertura de investigação para apurar crimes contra a Humanidade cometidos durante período eleitoral no Quênia, Estado-Parte do Tribunal. Aceito o pedido, a investigação levou ao indiciamento do Presidente do país, Uhuru Kenyatta (o caso foi arquivado porque a Procuradoria não conseguiu as provas diante da recusa do Quênia em cooperar com o Tribunal).

As relações entre o Tribunal Penal Internacional e o continente africano começaram a estremecer a partir do momento em que chefes de Estado passaram a ser indiciados por crimes internacionais. Nas situações da República Democrática do Congo, Uganda e Centro-Africana, por exemplo, apenas foram acusados perante o TPI chefes de milícias, ou seja, apenas um lado do conflito, muito embora tropas a serviço dos governos também tenham cometido atrocidades contra os civis e não tenham sido julgados pela jurisdição nacional, como se vê de inúmeros relatórios da ONU e de organizações não-governamentais.

Além disso, tensões surgiram entre o TPI e países africanos que recepcionaram Omar Al Bashir em visitas oficiais, com honras de chefe de Estado. Países como Malaui e África do Sul foram acusados de descumprirem deveres de cooperação jurídica com o Tribunal impostos pelo Estatuto de Roma e pelas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, como, por exemplo, o cumprimento do mandado de prisão exarado pelo TPI e a entrega de Al Bashir ao Tribunal.

Diante desse quadro de tensão contínua entre os deveres impostos pela ordem jurídica internacional e a raison d’État, a União Africana (UA), organização internacional que reúne 54 países do continente, passou a dar voz ao inconformismo dos Estados que entendem que a jurisdição do TPI é uma nova forma de colonialismo ocidental e a sustenta que a África deveria sozinha construir um modelo de justiça supranacional.

Muito embora existam países membros da UA que ainda apóiam a jurisdição do Tribunal (como Botsuana, República Centro-Africana, Mali e Gabão), a crítica institucional da União Africana pode ser resumida nos seguintes argumentos:

a) majoritariamente são os conflitos em países africanos que estão sendo investigados pelo TPI (de fato, das 10 situações em investigação e julgamento perante o Tribunal, 9 são de países do continente africano), enquanto que crimes contra a Humanidade e crimes de guerra perpetrados em outros Estados signatários ficam impunes, como os casos de Colômbia e Filipinas;

b) a interferência no TPI por parte do Conselho de Segurança da ONU, controlado pelos cinco membros com poder de veto (Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido e França), leva à perseguição dos “inimigos” dos interesses geopolíticos desses membros, o que explica o motivo de até o presente momento terem sido enviados pelo Conselho apenas dois conflitos, ambos em países africanos (enquanto que conflitos como os de Israel-Palestina, a invasão do Iraque pelos Estados Unidos e Reino Unido e guerra da Síria seguem impunes);

c) países como Estados Unidos, China e Rússia não são signatários do Estatuto, mas podem, via Conselho de Segurança, enviar qualquer conflito para o Tribunal e estão autorizados a vetar a tentativa de responsabilização de líderes mundiais que sejam parceiros geopolíticos, como se vê do caso do atual presidente da Síria Bashar al-Assad.

Como revela a História da justiça penal internacional, a política entre os Estados é a pedra angular para seu desenvolvimento, notadamente porque a sua construção depende de tratados multilaterais, assim como a manutenção da estrutura dos Tribunais Internacionais depende do dinheiro repassado pelos Estados. Ademais, a coleta de provas, a prisão de acusados e a proteção de vítimas e testemunhas dependem da cooperação dos Estados entre si e entre os Estados e os Tribunais Internacionais. Se por um lado a política internacional permite a fundação e possibilita a manutenção da justiça internacional, por outro lado a seletividade que ela encampa pode comprometer a legitimidade que se espera de uma Corte de justiça e levar à erosão do novo paradigma do direito.

Os Tribunais de Nuremberg e Tóquio foram chamados de “justiça dos vencedores”, eis que apenas uma parte do conflito foi levada ao banco dos réus (quem foi responsabilizado por lançar bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki ou pelos estupros coletivos cometidos pelas tropas aliadas contra as vítimas alemãs?). A mesma crítica foi feita ao Tribunal para a ex-Iugoslávia, já que crimes de guerra cometidos pela OTAN ficaram impunes. A justiça internacional está novamente na berlinda e tenta encontrar uma saída para restaurar a legitimidade ante a seletividade imanente ao sistema de justiça penal, mas parece que seu futuro não é nada promissor.


REFERÊNCIAS

BAZELAIRE, Jean-Paul. CRETIN, Thierry. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a Haia. Barueri: Manole, 2004. futuro incerto  futuro incerto  futuro incerto 

KELSEN, Hans. Law and peace in international relations. Buffalo: William S. Hein & Co., 1997.

ZOLO, Danilo, La justicia de los vencedores: de Nuremberg a Bagdad. Madri: Trotta, 2007. futuro incerto futuro incerto futuro incerto futuro incerto futuro incerto futuro incerto futuro incerto futuro incerto 

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