Game of Thrones e o Tribunal do Júri
Game of Thrones e o Tribunal do Júri
Está chegando ao seu final a série Game of Thrones, que recentemente alcançou o posto de série mais assistida do mundo, um fenômeno transmidiático.
Os fãs da série e que a acompanham desde sua primeira temporada certamente puderam notar que, com o passar do tempo (no caso, episódios), pessoas inicialmente ruins foram se tornando boas, e o contrário também ocorreu. De fato, vilões praticaram atos heroicos e inúmeras boas ações, enquanto heróis se mostraram pessoas capazes de praticar atos vis, adjetos, repulsivos, motivados especialmente por vingança.
Jaime Lannister, por exemplo, carregou por toda a série o estereótipo de regicida, o que não o impediu de salvar Brienne of Tarth de um estupro; Daenerys Targaryen, princesa exilada, busca fazer valer o seu direito a sentar no “trono de ferro”, mas não pensou duas vezes em fazer com que Drogon devorasse em chamas o pai e o irmão de Samwell Tarly, unicamente porque não se ajoelharam perante a “sua rainha”.
Essa oscilação de caráter, de personalidade, de comportamento faz com que os fãs igualmente oscilem quanto ao juízo de valor sobre os diversos personagens da série, de maneira que num episódio podemos odiar um personagem e em outro passemos a suportá-lo; mais adiante, adquirimos empatia que, aos poucos, evoluiu para a simpatia; por fim, de sobressalto damo-nos conta de que estamos até torcendo por ele.
Talvez um dos grandes méritos da série seja justamente a sutileza do autor de fazer com que analisemos o personagem em sua verticalidade, em sua inteireza, entendendo o contexto no qual seus atos foram praticados, verificando a evolução ou retrocesso de seu caráter e moral, compreendendo suas fraquezas enquanto ser humano, enfim, desvelando a essência da pessoa pelo exame das diversas fases da sua existência.
Mas o que uma série de ficção tem a ver com o Tribunal do Júri?
Game of Thrones e o Tribunal do Júri
De certa forma, no Tribunal do Júri advogados e promotores são autores e diretores de uma narrativa que será contada aos ouvintes, à plateia, aos jurados.
Erving Goffman, ao lançar as bases de sua teoria dramatúrgica, parte do pressuposto de que a vida é um cenário (palco) no qual há atores e público, no qual o papel desempenhado pelos atores se inter-relaciona com o papel desempenhado pelos demais atores e inclusive, pela plateia, e é somente por meio dessa inter-relação que os atores terão informações sobre a melhor maneira de agir para obter a resposta desejada.
Como referido, no Tribunal do Júri a posição de autor e diretor de um respectivo enredo caberá ao defensor e ao órgão acusatório, que por isso buscarão retratar aos jurados, de forma minuciosa, os seus personagens do processo (réu, vítima, testemunha etc.) criando ou fortalecendo vínculos, tudo para obter dos jurados sentimentos de simpatia/antipatia, empatia/apatia, brandura/rigor, de acordo com suas pretensões.
Há quem defenda que o Tribunal do Júri julga o fato; ouso dizer que, no Júri, julga-se muito mais o homem que o fato por ele praticado. Não é incomum que o inocente de um crime seja condenado por ter protagonizado uma vida desregrada, o que capitaliza as frágeis provas da acusação; lado outro, também é possível que o culpado seja absolvido por ostentar uma vida reta, o que enfraquece o encarte probatório.
Por isso, o histórico de vida do réu e, por vezes, da vítima, precisa ser retratado com detalhes aos jurados, para que entendam o porquê do fato. Afinal, ninguém se torna homicida do dia para a noite (salvo demência), e embora o porquê do fato nem sempre o justifique para fins de absolvição, poderá, por vezes, trazer aos jurados condições mais adequadas para acolher um privilégio, afastar uma qualificadora etc.
Clarice Lispector, escritora e jornalista ucraniana naturalizada brasileira, disse:
Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter… calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas, e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderá me julgar. Cada um tem a sua própria história.
É um alerta e tanto a ser feito aos jurados quando do início da exposição defensiva. De fato, cada um tem a sua própria história; a nossa vida é um rio que corre, é uma estrada que segue e da qual não podemos retroceder, e tampouco dela desistir.
Desde que nascemos a trajetória da nossa vida é pontilhada pelas nossas escolhas, pelas decisões boas ou ruins que tomamos num determinando contexto em que estávamos inseridos. É decidindo, é seguindo em frente, errando ou acertando que vamos demonstrando à sociedade o tipo de pessoa que somos, e assim construímos a nossa imagem, a nossa moral, apesar das falhas que todos temos como seres humanos.
De certa forma, somos produtos do meio em que vivemos e das escolhas que fazemos, e nessa perspectiva ninguém é tão puro, correto e bondoso digno de postular para si um predicado angelical, como também ninguém é tão impuro, incorreto e maldoso que não tenha feito algo digno de ser elogiável, enaltecido e que, no Tribunal do Júri, não possa servir de contraponto às alegações feitas pela parte ex adversa.
Todas as diversidades pelas quais o réu passou, antes e até mesmo depois da prática do delito, podem desaguar em uma decisão favorável dos jurados. A título de exemplo, cito aqui uma situação na qual um sicário (matador de aluguel) foi absolvido, apesar de um conjunto de provas fartíssimo e fortíssimo em seu desfavor, porque dias antes do seu julgamento pelo Júri sua esposa e filho, ao se dirigirem de uma cidade vizinha para visitá-lo na cadeia pública, se envolveram, no trajeto, em um acidente no qual ambos vieram a óbito. A tese da Defesa, centrada neste pós-fato, foi unicamente a clemência, e foi acolhida pelos jurados, pelo que reafirmo que os jurados não julgam apenas o fato em si, mas toda a história de vida do ser humano, o antes e o depois do fato.
Se o defensor tiver habilidade suficiente para remodelar o enredo inicial proposto pela acusação (que é quem escreve a primeira parte da narrativa), levando os jurados a conhecer o ato em sua inteireza (completude), redesenhando cada cena (momento, situação de fato) e assim potencializando as emoções dos jurados (e Freud já dizia que o ser humano é instinto, é pulsão [ID]), o epílogo poderá ser o almejado.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais, incluindo novos textos que conectem séries como Game of Thrones ao Tribunal do Júri?
Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.