Garantia da ordem pública e prisão preventiva
Garantia da ordem pública e prisão preventiva
Atualmente, sabe-se que o Direito Penal é “ultima ratio”, sendo utilizado na tutela dos bens jurídicos tidos como de supra importância para o convívio em sociedade. Podemos retornar, brevemente, ao período pré-político e pré-social que vivíamos, estando o homem, naquele momento, em constante estado de guerra.
Como Aristóteles afirmou, o homem é um animal político, necessitando viver em sociedade até mesmo para fins de sobrevivência. E, sendo isso percebido pelo homem, nasceu o contrato social do qual todos fazemos parte. Vivemos em uma relação de suportabilidade, uma vez que esse convívio não necessariamente é tido com contentamento, mas se suporta para que seja possível a própria sobrevivência.
Juntando-se, desse modo, os homens naturais, formou-se o homem orgânico, o homem artificial, a quem Hobbes chamou de “Leviatã”, ou seja, com a união e vontade de todos os homens criou-se o Estado, estabelecendo entre si um contrato social em que todos dispuseram de um pouco de sua liberdade para o convívio com segurança, mas não mais abrindo mão do que verdadeiramente se necessitava.
Pactuado o grande acordo e abrindo mão de parte de sua liberdade, urge a necessidade de não apenas ter regras, mas penas para os infratores de determinada regra, existindo, portanto, o Direito Penal para punir com maior severidade aqueles atos (leia-se ações ou omissões que tenham poder de colocar esse contrato social em risco).
Detendo o Estado o “jus puniendi”, não há mais que se falar em vingança privada. Todavia, como as normas são atos de vontades, estando no âmbito do dever ser, por óbvio, teremos vinganças privadas, pois, entrando na eficácia da norma, segundo Kelsen, não temos garantia de que uma pessoa vai se conduzir adequadamente com a norma. E essa é também a razão de ser da sanção.
Mas de que vale um simples contrato sem sanções para cláusulas não observadas?
Para aplicar a sanção – ainda que por apenas um determinado espaço de tempo, uma vez que a pena não é somente retributiva, inexistindo, portanto, a pena de morte ou as penas de caráter perpétuo – urge a necessidade do devido processo legal, sendo o processo não somente a ferramenta pela qual se aplica a pena, mas em que, principalmente, se observam os direitos fundamentais do acusado.
Historicamente, essa pena e esse processo penal foram evoluindo, passando por períodos como o do Código de Hamurábi, até mesmo pelo período da inquisição, períodos em que inexistiam um processo penal tal qual o conhecemos hoje, períodos em que falávamos de penas cruéis.
No período inquisitorial, por exemplo, tínhamos a liberdade da pessoa restringida não por ser visto como sua pena ou depois de um processo penal, mas para que respondesse esse processo e aguardasse sua pena, sendo o cerceamento da liberdade de suma importância para a própria existência do processo, pois através disso se conseguiria, com base em torturas, uma confissão, sendo então a pessoa direcionada para a sua pena, a morte.
Décadas de evolução histórica e de conquistas civilizatórias se passaram; garantias e direitos fundamentais à pessoa humana foram conquistados; todavia, ainda não temos um processo penal acusatório, encontrando com facilidade os resquícios de um sistema inquisitorial.
Dentre as conquistas, conseguimos extinguir a pena de morte (com alguma exceção), tendo na pena privativa de liberdade a forma em que o Estado pode exercer sua máxima violência por consequência de condenação penal.
Não obstante, o cerceamento da liberdade continua a figurar também como uma medida cautelar e, nesse ponto, Beccaria bem assinala, dizendo “tratar-se de um direito contrário ao fim da sociedade, que é a segurança pessoal”, referindo-se ao contrato social e lembrando o porquê de sua existência.
Fala ainda que se refere ao direito de prender discricionariamente o cidadão, devendo a lei determinar o caso em que é preciso tal medida cautelar. Ora, defende aqui o princípio da legalidade.
Garantia da ordem pública
Mas poucos não são os casos dos juízes, que, escorando-se na lei, fundamentam uma cautelar na famigerada “garantia da ordem pública”, jogando dentro da horrível mansão da fome e do desespero, como diria Beccaria, pessoas que ainda não tiveram uma sentença penal condenatória, buscando, por vezes, forçar uma delação ou uma confissão.
Ocorrendo esse tipo de medida cautelar em processos de competência do Tribunal do Júri, o acusado já chega preso, incutindo na mente do jurado o teor de culpabilidade. Ainda que não esteja algemado e com uniformes do presídio, está ali rodeado por policiais, andando de braços cruzados e cabeça baixa.
Sem uma fundamentação adequada, é encarcerado, cumprindo uma pena por um processo que ainda nem tem sentença (pronúncia, etc.), fundamentando-se tão somente na garantia ordem pública, sem de fato apontar elementos cabais para tal medida, quando muito falando no risco de reiteração, como se, munido de poderes mediúnicos, acreditasse, ainda, em um determinismo. Ainda que o fato que está ensejando a cautelar seja estruturado em fumaça, ou seja, nada concreto, sem certeza do que já foi, dizem ter certeza do que será.
Tocados pela gravidade do delito, buscam acautelar a sociedade, esquecendo-se que a gravidade nada mais é do que núcleo do próprio tipo penal, devendo tão somente ser analisado em eventual condenação!
E quando o réu tem mandado de prisão fundamentada na ordem pública, é intimado na sua residência, comparece na audiência e, não percebendo o juiz ou o membro do Ministério Público, tranquilamente vai embora?
E a ordem pública? Realmente está abalada? Tem intenção de atrapalhar a instrução criminal ou até mesmo de ocultar-se de uma aplicação penal?
Ainda que se trate de um tema já muito falado e discutido, os erros judiciários e as aberrações jurídicas como “acautelar a sociedade” e “atender o clamor público” persistem, colocando em risco grandes conquistas civilizatórias.
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