‘GatoNet’ é crime?
GatoNet é crime?
Vou utilizar um caso concreto para ilustrar qual crime pode ser configurado o denominado GatoNet, pois dependendo do modus faciendi o crime poderá ser do art. 171, caput do Código Penal; art. 183, caput da Lei 9.472/97; art. 70 da Lei 4117/62; ou até mesmo, fato atípico.
O inquérito policial foi instaurado para se apurar a conduta e demais circunstâncias de Caio, que consistiu em uma redistribuição de sinal de forma clandestina por meio de equipamento eletrônico regularmente instalado, em ambiente residencial, pertencente à empresa de telefonia que denominemos de “Tchau”, cujo intuito do agente Caio foi de distribuir sinal de internet, que poderia viabilizar sinal de telecomunicações e acesso à rede mundial de computadores, por intermédio dos serviços da operadora de internet “Tchau”, denominada de provedor de conexão, conforme art. 9º e ss da Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet).
Esta conduta também causou prejuízo a referida empresa por deixar de receber pelo serviço posto em disponibilidade para aqueles que poderiam contratá-la, mas deixou de realizar em razão da disponibilidade do serviço realizado por Caio, sem pagar nada mais por isso.
Em outras palavras o agente, utilizando o equipamento da provedora de conexão à internet, “Tchau”, retransmitia esses sinais a outras casas, que “dividiam” a utilização da internet, que era paga à operadora “Tchau”, mas rateada por entres os usuários para a utilização da internet, englobando ou não disponibilização de utilização da rede para se comunicaram por telefonia fixa.
É imperioso definir se a conduta do investigado se amolda no art. 183 da lei 9.472/97, que tem como objeto jurídico do delito a exploração, traduzida no verbo “desenvolver”, clandestinamente atividades de telecomunicação.
O tipo penal possui a elementar normativa “clandestinidade”, que é esclarecido no art. 184, parágrafo único, na qual considera “clandestina a atividade desenvolvida sem a competente concessão, permissão ou autorização de serviço, de uso de radiofreqüência e de exploração de satélite.”
Esta legislação trata de especialização da engenharia de comunicação, na qual utiliza para sua regulamentação termos técnicos daquela especialidade de saber, segundo o qual atribuem o exato alcance do conteúdo normativo do significado de “atividades de telecomunicação” a ser considerada como objeto de exploração, sob regime de concessão, permissão ou autorização de serviço.
Razão pela qual temos que nos valer da complementação necessária para a interpretação dos elementos objetivos descritos no art. 183 da lei 9472/97, com os conceitos trazidos pela própria norma. Trata-se de uma norma penal em branco homogênea homovitelina ou homóloga, pois provêm da mesma fonte normativa e o complemento do tipo penal também está no mesmo diploma que origina a norma penal. Acaso seu complemento necessitar de conceitos que estão inseridos no Código Brasileito de Telecomunicações, Lei 4.117/62, a norma terá caráter de homogênea heterovitelina ou heteróloga.
Insta salientar que a ANATEL possui resolução regulando a autorização da utilização de serviço adicional de telecomunicação e seu uso em residência. Neste jaez estamos diante de uma norma penal em branco ao quadrado por se tratar de uma norma penal requer um complemento que, por sua vez, deve também ser integrado por outra norma. Assim, o art. 183, caput, nos remete ao conceito de atividade de telecomunicações do art. 60, ambos da Lei 9.472/97, cujo conceito “serviço de telecomunicações” está entrelaçado ao conceito de “serviço adicionado”, previsto no art. 61, cujo parágrafo segundo determina que a Agência reguladora regulamente este serviço, na qual encontramos na resolução nº 73/98.
A resolução nº 73, de 25 de novembro de 1998, no seu art. 33, dispõe que independerá de concessão, permissão ou autorização a atividade de telecomunicações restrita aos limites de uma mesma edificação ou propriedade móvel ou imóvel, como por exemplo, a rede denominada de intranet, exceto quando envolver o uso de radiofrequência, como ocorre, por exemplo, de utilização de redes sem fio, por intermédios de roteadores sem fio.
No caso em tela foi colhido o depoimento do funcionário Mévio da operadora “Tchau”, na qual informa que havia no local “conexões para radiofrequência”, no entanto o mesmo não foi apreendido conforme laudo de apreensão de objetos apreendidos no local, não sendo possível, portanto configurar a materialidade já que este equipamento configuraria a exploração fora dos padrões estabelecidos pela resolução 73, denotando necessidade de autorização, consequentemente poderia ser considerado um tipo de desenvolvimento clandestino de atividade de telecomunicações.
O art. 171 do CP e o art. 183 da lei 9472/97 são tipos penais distintos porquanto o estelionato é crime material e tem como bem jurídico tutelado o patrimônio, enquanto a exploração clandestina de serviço de telecomunicações um crime formal ou de perigo abstrato cujo bem jurídico é a segurança das comunicações.
A questão do caso concreto enseja sabermos se a conduta de Caio Gonçalves de utilizar equipamento oficial da empresa “Tchau”, que também não foi apreendido, apesar de estar regularmente instalado, no entanto, redistribuindo sinal de informática para as demais casas vizinhas irregularmente, se adequaria ao conceito de “atividade de telecomunicação”, o que ao nosso ver não há elementos para esta conclusão.
Ao que parece é a distribuição de sinal de internet para fluxo de dados de telemática e informática tão somente, não se adequado ao conceito de exploração de serviço de telecomunicações, mas de simplesmente um serviço de valor adicionado, conforme preceitua o art. 61 da lei 9.472/97, não coberto pelo conceito de serviço de exploração de atividade de oferta de telecomunicação, conforme deixa claro os artigos em comento, in verbis:
Art. 60. Serviço de telecomunicações é o conjunto de atividades que possibilita a oferta de telecomunicação. § 1º Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção, por fio, radioeletricidade, meios ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético, de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza. §2° Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicação, seus acessórios e periféricos, e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis. Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações. §1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição. §2º É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.
Em suma, o fato de utilizar-se da internet, inclusive, para se comunicar com as pessoas, não configura “atividade de telecomunicação” para efeitos da lei, consequentemente, para complementar a elementar do tipo penal do art. 183, caput, não obstante poder ser considerado “telecomunicação” sob o aspecto da engenharia de comunicação, mas não para o direito penal.
No âmbito do STF o tema foi objeto de debate, ainda que incidental, por ocasião do não conhecimento do habeas corpus 118.156/GO, de relatoria do Min. Luiz Fux, assentando que “a conduta tipificada no art. 70 do antigo Código Brasileiro de Telecomunicações diferencia-se daquela prevista no art. 183 da nova Lei de Telecomunicações por força do requisito da habitualidade (…). A atividade de telecomunicações desenvolvida de forma habitual e clandestina tipifica delito previsto no art. 183 da Lei 9.472/1997 e não aquele previsto no art. 70 da Lei 4.117/1962” (HC 115.137, Primeira Turma, de que fui Relator, DJ de 13.02.14)”, afirmando, portanto, que o art. 183 se refere a exploração de atividade e não de serviço de valor adicional operada por usuário, conforme o caso em tela.
No mesmo sentido o TRF da 5º Região, na “Apelação Criminal ACR 00052872220134058500 AL (TRF-5), Data de publicação: 02/02/2015, na qual assentou que a “atividade tida como “comunicação multimídia”, não se enquadra como “serviço de telecomunicações”, senão que dele se utiliza para viabilizar o acesso do usuário final à internet (SCI). Trata-se de serviço de valor adicionado (SVA), atividade que não demanda autorização da ANATEL, nos termos da Norma do Ministério das Comunicações nº 04/95; daí por que o seu gestor jamais poderia realizar o crime encartado na Lei nº 9472 /97. Ainda que se tratasse de genuíno serviço de telecomunicação, é certo que a lei de regência não tutela criminalmente as práticas de comunicação social operadas de modo ostensivo, ainda que sem outorga do órgão competente, as quais devem ser vigiadas e punidas pelos demais ramos do ordenamento jurídico, notadamente o Direito Administrativo (HC5497, des. Paulo Roberto de Oliveira Lima, julgado em 10 de junho de 2014). Apelação improvida.
Verifica-se que o bem juridicamente tutelado no art. 70 da Lei nº 4.117/62 ou art. 183 da Lei nº 9.472/97, é de natureza pública, porquanto protege a segurança dos meios de comunicação, serviço público cuja exploração é atribuída à União, nos termos do art. 21, IX, da Constituição Federal. Muito embora, existem julgados do TRF da 4ª Região em sentido contrário, o que demandaria um debate sobre a competência da justiça federal para processar e julgar estes tipos de delitos.
Podemos encontrar exemplo na jurisprudência de prática considerada crime pelo art. 70 da Lei nº 4.117/62, especificamente no que se refere ao desenvolvimento de atividade clandestina de radiodifusão, as denominadas rádios comunitárias, no entanto, se tratam de crimes de menor potencial ofensivo.
Invocando-se a intervenção mínima como caráter norteador a limitação ao poder de punir do Estado, não restam dúvidas de que há medidas muito mais eficientes no âmbito da relação de consumo e do direito administrativo muito mais eficientes a se coibir a prática desta atividade, o que a nosso ver, configura-se como uma conduta atípica, em razão da fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal, a conduta de incluir valor adicionado como forma de tornar comunitária a distribuição de sinal do provedor de internet.
Aliás, possuem um aparato tecnológico muito mais eficaz do que o próprio Estado para fiscalizar estas atividades irregulares, portanto, conflito que se resolve sobre as normas sobre o mercado e não pelo Direito Penal, que no caso, seria um tiro de canhão em uma formiga.