Guerra às drogas e produção de estereótipos: quem é o(a) “traficante”?
Guerra às drogas e produção de estereótipos: quem é o(a) “traficante”?
Se há um tema que mereceria amplo debate diante o impacto em matéria de segurança pública em solo brasileiro, este seria o das políticas de combate às drogas e, consequentemente, da sua legislação penal, no caso, a Lei nº 11.343/2006.
Todos nós temos notícias que em âmbito mundial as referidas políticas proibicionistas de repressão à produção e de criminalização do consumo em matéria de drogas, vêm sendo repensadas por diversos países, nos últimos anos, como em determinados Estados norte-americanos, para além da Europa e da própria América do Sul, no caso do Uruguai.
Guerra às drogas
É que, de acordo com JESUS (2018), a avaliação da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia e da Comissão Global de Políticas sobre drogas é de que a chamada “guerra” contra as drogas, assentada numa lógica bélica, a qual teria se iniciado com o então Presidente Richard Nixon em 1971 nos EUA, fracassou, deixando consequências devastadoras para o mundo todo, não apenas em termos de encarceramento e mortes, digamos.
No caso brasileiro, entre outros tantos problemas apontados por um debate que perpassa o campo acadêmico, político, jurídico e midiático, temos a falta de critérios objetivos para a diferenciação entre os chamados “usuários” dos chamados “traficantes”, o que teria balizado as alterações legislativas que criaram a Lei nº 11.343/2006, muito embora seus resultados não tenham contribuído de fato para a referida distinção, quanto mais por que a despenalização da infração penal de porte de droga para consumo próprio, que se encontra sub judice no âmbito do STF; providenciou foi é na intensificação da repressão do comércio de drogas, gerando, portanto, a realidade outrora que vivemos.
Quem é o(a) traficante?
Entretanto, nesse ponto específico, temos que as referidas políticas proibicionistas possuem também o condão de criar estereótipos, contribuindo sobremaneira para o aprofundamento da seletividade penal, já tantas vezes apontada por meio da intersecção gênero, raça e classe, produzindo um inimigo interno que muito bem se enquadra na lógica bélica de guerra às drogas, que é o chamado “traficante”.
Não é por outra razão que Zaffaroni (2013) aduz que desde a Inquisição até hoje os discursos foram se sucedendo com idêntica estrutura, pois, alega-se uma emergência, como uma ameaça extraordinária que coloca em risco a humanidade como um todo, e o medo da emergência é usado para eliminar qualquer obstáculo ao poder punitivo, visto este como única solução para o problema estabelecido, sendo que tudo que se opõe a esse poder é visualizado como inimigo.
Agora, enquanto a produção do estereótipo nos pareça evidente em termos midiáticos, bem como na seleção operada, via de regra, pelo enfrentamento policial, interessante é verificar o aporte e a construção do estereótipo, tanto quanto no senso comum, no interior das decisões judiciais.
Nesse sentido, em contato com decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no acórdão nº 70074892530, o qual trata de um processo criminal pela prática, em tese, do delito de tráfico de drogas, nos termos do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, onde pretensamente teria sido apreendido em poder do acusado uma quantia em dinheiro, e 4,4 g de crack, 2,47 g de cocaína e 0,89 g de maconha, foi trazida a lume discussão quanto ao apenamento, após o reconhecimento da prática da infração, ainda que negada a autoria pelo acusado, aduzindo tratar-se de usuário de drogas, mas, com amparo na palavra dos policiais e na apreensão efetivada; afastada pelo Relator a possibilidade de elevação da pena-base tão-somente pela natureza da substância apreendida, o que entendia como absurda, mas sendo vencido pela maioria, que, para além da utilização da natureza da substância para fins de elevação da pena, nos termos do juízo de primeiro grau e entendimento do órgão fracionário, trouxe enquanto argumento para tanto a definição dada pelo Ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça, no STJ Notícias, no sentido de que, segundo o Ministro, o “traficante” de crack é um serial killer.
O que talvez o Judiciário não tenha se dado conta é de que as decisões judiciais transmitem discursos, acenam políticas, e que o papel efetivo desse Poder deveria o de ser, conforme Zaffaroni já nos disse o de semáforo da criminalização secundária, e não o de reprodutor dos estereótipos construídos pelo social, pela mídia e pela seleção policial operada na ponta.
O distanciamento dos argumentos jurídicos para a adoção de argumentos meramente morais e preconceituosos, como, na espécie, não apenas distanciam as decisões judiciais do seu papel de conferir justiça, mas acabam por se tornarem também o lugar próprio da violência, reproduzindo o ciclo bélico dessa guerra que tem em nome do combate às drogas pagado um preço muito alto, pagado esse preço com vidas, muitas vidas, vidas matáveis e, portanto, selecionadas por uma política que diz e que escolhe quem deve viver quem deve morrer.
Precisamos muito refletir sobre isso!
REFERÊNCIAS
JESUS, Maria Gorete Marques de. A verdade jurídica nos processos de tráfico de drogas. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Questão Criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013.