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Guerra às drogas

Guerra às drogas

Passados exatos 10 anos do começo de minhas pesquisas sobre a questão das drogas e criminalização da juventude pobre no Rio de Janeiro, o sentimento de esgotamento do tema aparece de novo para mim. Tenho falado disso em recentes escritos: nada de novo no front. A metáfora bélica se encaixa como uma luva na dicotomia entre a realidade nua e crua e os efeitos sinistros da nossa política criminal de drogas, assemelhando-se à posição norte-americana em relação ao Iraque, ou à israelense em relação aos palestinos. Talvez a expressão ocupação seja a palavra-chave para entender uma dinâmica de combate em que quanto maior  o fracasso, maior o apego aos fundamentos e ações que levaram ao fracasso. São assuntos de fé, dogmas. (BATISTA, Vera Malaguti , 2012, p. 153).

Em congresso internacional ocorrido em 2015, com expositores de Peru, Bolívia, Argentina, Brasil e Grécia, em Santa Cruz de la Sierra, minha conferência destinou-se à problemática da guerra às drogas na América Latina, entre particularidades desde nossas margens, esboçando uma recuperação histórica até a atualidade dos controles, com dados desastrosos ligados à aludida política; posteriormente se adentrando em perspectivas abolicionistas, e questões mais profundas do pensamento político.

Paradoxalmente, as reações e ataques (inclusive pessoais) mais contundentes aos expositores, em eventos dos quais participei, se deram em situações de questionamento à insanidade da guerra às drogas, e não propriamente em discussões muitíssimo mais amplas e pretensiosas, como as que propõe múltiplos abolicionismos.

É dizer,  embora a descriminalização das drogas (apenas para ilustrar um exemplo) seja proposta muitíssimo menor que outras (que vão muito além), parece, imediatamente, ativar uma rede de temores e ódios colossais facilmente materializados, incomodando toda uma armadura moral que naturalizou uma série de premissas estruturantes de culturas repressivas; e entre elas, encontra-se acastelado o princípio da autoridade, no limite, abrangente da crença na necessidade imprescindível de um controle austero, para assim se evitar um suposto caos, uma emergência anunciada que eclodiria, sem tais regimes de castigos, hierarquias e fluxos de controles colonizadores estabelecidos; sem um poder maior, demarcador e supressor de liberdades, instituidor de limites destinados a evitar uma espécie de guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes) hobbesiana.

Na verdade, o aparente paradoxo, do ponto de vista lógico sobre seu conteúdo, não reflete bem um paradoxo; e, embora saibamos que temas como abolicionismos (ou mesmo anarquismos) nos remetam a conjuntos de singularidades muitíssimo mais complexos e abrangentes (mais ameaçadores de culturas repressivas), o certo é que suas difusões, no campo do conhecimento da palavra (embora dispensáveis às práticas), não resultam em temores instigados desde a infância (como no caso dos temores relacionados às drogas ilícitas); quer dizer, dificilmente pais e mães temem no século XXI que seus filhos sejam influenciados, por anarquistas, ou abolicionistas penais, ou outros exemplos contundentes, enquanto que a preocupação acerca das drogas se mostra quase que uma constante imutável. Uma mãe não diz ao seu filho: cuidado com os abolicionistas ao atravessar a rua.

Possivelmente diga algo parecido sobre este assunto: as tão destrutivas drogas sobre as quais se constroem monstros e inimigos, sendo a figurada dos tais “traficantes” associadas a verdadeiros seres sinistros, sanguinários, ladrões de alma das criancinhas.

Deve ser provavelmente mais fácil receber uma pedrada, ao expor de forma nua e crua a brutal imbecilidade materializada na guerra às drogas, que recebê-la tratando de assuntos muitíssimo mais críticos, versáteis, amplos, contundentes e pretensiosos. Desvelar a guerra às drogas no Brasil, que ativa tantas representações, estereótipos, imagens, premissas e pressupostos estruturantes de culturas repressivas, é se atentar ao fato de que mesmo o mais raso permanece um tabu. Em tempos de crise, o Brasil queima vidas e dinheiro nessa guerra asnática, encarcerando e produzindo mundos melancólicos pintados de sangue (sobretudo de jovens negros).

Tamanha miséria também comumente gera uma tristeza e desânimo, afinal de contas, há muito as vozes já foram anunciadas sobre as ressonâncias desse genocídio a gotejamento; as palavras dos mortos vez ou outra são ouvidas, mas não são profundamente escutadas (com atenção e atribuição crítica de significado); as palavras se perdem na superfície antes de alcançarem as armaduras morais.

Não por acaso, Zaffaroni (que não é abolicionista), ao expor o papel das vozes anunciadas mas ignoradas em sua criminologia cautelar preventiva de massacres, enfatiza as palavras dos mortos; o que essas nos dizem, e o que não ouvimos (também refletindo sobre os porquês). Acrescento as palavras negligenciadas dos que já desvelaram a problemática da guerra às drogas e bem demonstraram, mas que não nutrem o mesmo potencial de difusão de Datenas e demais caricaturas do senso comum teórico e criminológico.

Em algumas falas, Zaffaroni e outros criminólogos sustentam majoritariamente uma estratégia (ainda que conheçam outras mais contundentes), de lancearem problemáticas como a guerra às drogas sem alvejar diretamente essa armadura moral (comendo pelas beiradas, poderíamos dizer); começando pela superfície; e assim, suas palavras igualmente não penetram tais pressupostos constitutivos das produções do poder.

Se, hipoteticamente, metade dos presentes seguem energizando a guerra às drogas, mesmo após receberem cusparadas de todos os dados possíveis, então, amigos, provavelmente seguir cuspindo dados não adiantará a essas pessoas; apenas, talvez, garantirá a interpretação do insistente como arrogante.

Por isso, em diferentes situações, guardei nos bolsos a coleção de dados, e optei por lancear o princípio da autoridade e a construção dos temores, bem como as ressonâncias específicas da questão, apenas posteriormente retornando na concretude da guerra às drogas, o que sempre me pareceu mais adequado para conversar com os insistentes aos dados, e impacientes com as recuperações históricas; é preciso derrubar certas premissas furadas antes de seguir, caso contrário, se luta em territórios já dominados, brutalmente comprometidos por linguagens anteriores, encarceradoras do pensamento crítico, e regentes do senso comum sedimentado. (Acrescento que foram, essas mudanças de enfoque, construtoras de alguns dos poucos momentos em que senti as palavras verdadeiramente penetrando nas estranhas das construções do poder dos mais incomodados, nas falas sobre a guerra às drogas, ao contrário dos momentos de bombardeamento de dados).

Imagino que  importante seja adaptar-se às situações, perceber o fracasso de certas abordagens sobre algumas pessoas, e reinventar formas; olhos e movimentações sem formas rígidas, dispostos a acompanharem e sobrepujarem as batalhas discursivas contra a multiplicidade e ampla versatilidade dos controles, com toda sorte de discursos legitimantes e produções do poder.

Formas rígidas não sobrepujam (e nem acompanham) a versatilidade de tais conjuntos repressivos, que se amoldam para melhor manipularem e controlarem, e que se cristalizam muito facilmente, naturalizados e incorporados, posteriormente (re)produzidos como obviedades, regentes de linguagens e pensamentos futuros totalizantes, envoltos em universalidades e centralidades.

A teatralidade verticalizada dos tribunais, como captura e governo sobre as nuances da vida, com sistemas pré-estabelecidos de ação para a complexidade da mesma, em si já comporta (e anuncia aos que escutam), um assombroso massacre de possibilidades libertárias, marcado pela absorção do único pelo universal, e assim dissipando toda imaginação para além dos fluxos pré-estabelecidos; imaginação inaceitável aos controles e produções do poder.

Se reinventar em um front tão esgotado não constitui tarefa exatamente fácil, mas expor, dissolver e abolir a versatilidade dos controles demanda mais que cuspir e apresentar sempre os mesmos dados e enunciados.

Dissipar e dissolver dogmas cristalizados pressupõe um esforço inventivo e dinâmico de novas linguagens nem sempre bem recebidas, inclusive pelos representantes do monopólio da crítica permitida, é dizer, os gurus das ciências criminais.  


REFERÊNCIAS 

BATISTA, Vera Malaguti. História sem Fim. In: PASSETTI, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

Guilherme M. Pires

Doutor em Direito Penal (UBA). Advogado.

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