Há espaço para o futebol no Tribunal do Júri?
O advogado que atua no Tribunal do Júri deve ser um bom contador de histórias. Ninguém questiona isso.
Sempre digo que para além do direito, o Tribuno precisa buscar conhecimento sobre as mais diversas áreas da vida. E não falo só de balística, medicina legal, filosofia, psicologia, etc. Falo de tudo mesmo. Por exemplo, faz alguns meses que passei a seguir tudo quanto é página de futebol do passado.
E tive uma constatação interessante: é espantoso como as pessoas fabricam memórias falsas. Gente de 15 anos de idade que nunca morou em Porto Alegre “se lembra” de que Jonas foi o melhor atacante gremista dos últimos tempos. Pessoas que juram que o Oliver Kuhn foi realmente o melhor jogador da copa de 2002. Por vezes, basta publicar a foto de algum jogador do passado para que nasça um novo craque.
Fico estupefato ante a constatação, mais uma vez, de que as pessoas podem FABRICAR MEMÓRIAS FALSAS sobre o passado, e com frequência inventar um passado do nada.
E vocês se espantam quando a acusação afirma que o livro “Bandidolatria e Democídio: Ensaios sobre Garantismo Penal e a Criminalidade no Brasil” é um livro sério? Que seus autores são renomados doutrinadores da área jurídica? Agora imagine a quantidade de gente que está na cadeia porque alguém “se lembra” de alguma coisa….
Mas o futebol não é capaz de explicar somente isso.
Certa vez, em um júri, me deparei com a seguinte situação: o Réu possuía um álibi. Quando ouvido em Juízo, afirmou que estava numa confraria que ia todos os meses, tendo relatado quem estava naquele dia. Ocorre que, uma das pessoas que o Réu disse que estava na confraria, naquele dia, não tinha ido.
O Ministério Público, a partir do equívoco cometido pelo Réu, tentou descredibilizar o álibi existente. Afirmou que seria impossível um indivíduo que estava naquele local não conseguir relatar, com precisão, todos os seus amigos que lá estavam.
A solução para isso? O futebol. Sabia que ao menos 3 dos 7 jurados eram torcedores do Grêmio, e me lembrei da escalação campeã da libertadores de 2017.
Comecei minha sustentação falando sobre isso. Disse que o goleiro era o Marcelo Grohe; que os laterais eram Edílson e Bruno Cortez; que a dupla de zaga era Geromel e Kannemann; que os volantes eram Jaílson e Arthur; que no meio-campo tinha Ramiro e Luan; e que o ataque era formado por Fernandinho e Lucas Barrios.
Os três jurados balançavam a cabeça de forma positiva a cada nome que saía da minha boca, felizes com a lembrança da conquista gremista. Foi quando eu lembrei que um dos maiores jogadores do time, Walter Kannemann, não jogou a final, pois estava suspenso. Quem jogou foi o detestado Bressan.
Todos os jurados me olharam sem entender o porquê de eu estar contando aquilo. E eu os falei: Vossas Excelências achavam que Kannemann havia jogado por um motivo muito simples, ele sempre jogava. Ele era o titular do time. Assim como o amigo do Réu era membro da confraria e sempre estava lá, mas, naquele dia, por algum motivo, ele não foi.
Sem falar nos diversos momentos da história do futebol em que os craques foram determinantes para uma derrota. Roberto Baggio, em 1994, errou o pênalti que decretou o tetracampeonato para a seleção de Parreira. Dinho e Arce, em 1995, perderam as penalidades que decretaram a derrota do Grêmio na final do mundial contra o Ajax. Tudo isso apenas demonstra como todos nós somos entes falíveis, até mesmo aqueles promotores e delegados experientes.
E por isso o futebol é a melhor metáfora da vida: porque ele explica, de forma didática, as mais variadas situações; explica como é fácil a imprensa e os amantes inventarem ídolos do passado; e explica como, por vezes, nós podemos nos enganar a ponto de confundirmos a escalação do jogo mais importante da década do nosso time do coração. Portanto, caros leitores, há espaço para o futebol no Tribunal do Júri, porque o futebol é uma excelente desculpa para falar de coisas mais importantes do que o futebol.