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Habeas Corpus: “o corticoide” do Judiciário

Por Vilvana Damiani Zanellato

Desde os meus 17 anos, quando fui agraciada com minha primeira crise alérgica, faço uso de um medicamento muito conhecido por todos: o corticoide.

De forma bem (mas bem) resumida e em termos leigos, pode-se dizer que o corticoide é um hormônio que se presta ao tratamento de inúmeras doenças, em especial para fazer cessar sintomas de problemas por vezes desconhecidos. Vale dizer: na dúvida, corticoide!

Mas o que isso tem a ver com o habeas corpus?

Tudo!

Parece brincadeira, o comparativo, mas não é.

A mesma situação, mutatis mutandi, é constatada quanto ao habeas corpus. Diante de qualquer discordância relacionada à investigação penal ou à ação penal é ele impetrado, indiscriminadamente, com pedido liminar.

Há aproximadamente 20 anos, lembro que em cada Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina eram julgados, semanalmente, de 10 a 15 habeas corpus. Cada ação mandamental não permanecia mais de uma semana conclusa com seu relator. A medida era certamente de urgência. Tratava-se de efetivamente preservar o direito de ir e vir daquele que tinha sua liberdade constrita ou se encontrava na real iminência de perdê-la.

Raramente era impetrado habeas corpus sem que houvesse suposta ameaça de uma possível restrição à liberdade. E, quando tal fato ocorria, o writ era analisado sem atropelar os julgamentos realmente mais urgentes.

Atualmente, desconheço quantos habeas corpus o Tribunal de Justiça de Santa Catarina recebe e julga por semana, mas sei que nas Cortes Superiores cada Ministro recebe mais de uma dezena por dia.

Há quase 6 anos, recordo-me que no Superior Tribunal de Justiça, em levantamento realizado no gabinete de um dos Ministros que atua na área penal e que sempre se pautou pela diligência, havia quase 1.000 habeas corpus conclusos para julgamento! Pelo menos 50% deles referiam-se a réus soltos, sem qualquer ordem escrita de prisão, mas que se sentiam constrangidos por responder a inquérito e/ou a ação penal, alegando inocência, atipicidade da conduta, alguma nulidade no procedimento etc.

Essa situação bem revela, repita-se, o uso indiscriminado de tão valioso e importante instrumento de salvaguarda da liberdade.

Tal utilização acaba por distanciar o habeas corpus da sua precípua função constitucional de solução rápida a ser dada aos casos em que se malferir o direito de locomoção.

Mas não é só. Dado o caráter emergencial, seu julgamento prepondera quanto a casos outros que paralelamente tramitam no Judiciário.

Isso porque, por ser medida de urgência, deve ser analisado antes das demais demandas, causando transtorno na pauta e fazendo com que a causa penal acabe se tornando “velha” nos escaninhos/HDs dos gabinetes.

Nem se avente que se está a chancelar qualquer tipo de constrangimento ilegal. Longe disso! Se na época da ditadura havia lugar à coação, no Estado Democrático de Direito, não há espaço para ilegalidades desse jaez.

Ainda que nosso ordenamento processual penal seja do século passado, a leitura constitucional a ele empregada, aliada a inúmeras alterações significativas na legislação, não deixam dúvidas da lista de recursos e ações a serem utilizadas para fins da irrenunciável ampla defesa.

A título exemplificativo, pode se citar a apelação criminal, os embargos de declaração, os embargos infringentes, o recuso em sentido estrito, a revisão criminal, o recurso especial, o recurso extraordinário, o agravo em execução, o agravo interno.

Então, por que se utilizar do habeas corpus para tudo??? Ele não garante julgamento mais rápido. Ao contrário. A abundância de impetrações, além de atrapalhar o exame de todas as demandas penais, atrasa a apreciação dos próprios habeas corpus.

Por essas razões, o Superior Tribunal de Justiça “tentou” restringir o uso elastério do habeas corpus, esclareça-se, sem praticar qualquer ilegalidade ou açoitar a ampla defesa. Durante breve lapso deu à ação mandamental a sua verdadeira leitura de proteção à liberdade daquele que sofre ou, que tudo indique, venha a sofrer ameaça ao seu direito de ir e vir.

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal, pela sua Segunda Turma, passou a cassar referidas decisões, determinando que a Corte Superior apreciasse os writs lá não conhecidos, ainda que não se cuidasse de constrangimento ilegal diretamente pertinente à liberdade.

Outra solução não restou, senão a que vem sendo dada pelo Superior Tribunal de Justiça, qual seja, não conhece do habeas corpus, mas mesmo assim, curva-se, e analisa o mérito para verificar algum constrangimento que lhe permita conceder a ordem de ofício.

Enquanto impetrações não param, outros processos dormem zzzzzzz ……..

É salutar lembrar que corticoide em excesso não cura e pode trazer uma série de efeitos colaterais prejudiciais à saúde.

É salutar lembrar que habeas corpus não se presta a qualquer situação e sua impetração de modo açodado pode trazer uma série de efeitos colaterais prejudiciais à prestação jurisdicional.

Não compactue com esse círculo vicioso. Faça sua parte: use-o com moderação, sob pena de prejudicar os que verdadeiramente são vítimas de constrangimento ilegal em sua liberdade.

_Colunistas-Vilvana

 

Vilvana Damiani Zanellato

Chefe de Gabinete da Procuradoria-Geral Eleitoral. Mestranda em Direito Constitucional. Professora de Direito.

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