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HC 126.292: do precedente repristinatório ao Estado de exceção


Por Ruchester Marreiros Barbosa


No dia 17/02 deste ano, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 126.292, admitiu que a decisão condenatória em segundo grau de jurisdição já autorizaria execução do decreto condenatório, permitindo ao Estado-juiz o início da execução da pena, ainda que não estejam esgotados os recursos para as instâncias especiais como o STJ e o STF.

É até fácil entender a motivação social de cólera e indignação à impunidade, com ao qual também nos somamos em coro em favor de medidas eficientes para a diminuição da criminalidade, mas não podemos concordar com o valor tributado na conta que recairá numa sociedade órfã de pai e mãe (ficou sem proteção).

Neste sentido, nos parece que se adequa esta analogia ao qual fizemos com a crítica, em forma de dúvida, que Ingeborg Maus assevera em seu ensaio sobre o supergo do judiciário, em que questiona a antiga figura da unidade da nação na figura paterna do monarca, detentor dos mais valiosos valores morais representados pela sociedade, de cuja representação é reproduzida pelo judiciário, que na Alemanha possuía maior credibilidade perante a sociedade do que uma universidade e a própria imprensa:

“A pergunta a ser feita é, portanto, a seguinte: não será a Justiça em sua atual conformação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”

Dworkin leciona que argumentações éticas, morais e pragmáticos são conteúdos políticos desempenhados pelos legisladores durante o processo legislativo de elaboração das leis, no entanto, publicada e ingressando no ordenamento e, portanto, após sua incorporação ao Direito, sua invocação jurisdicional ou pelo sistema de justiça, apenas se pode dar por meio de argumentos de princípios jurídicos e não mais por argumentos de política (DWORKIN, 2001, p. 101).

Desta maneira, quando o STF reescreve a constituição substituindo o papel do poder legislativo no processo de elaboração da norma, porquanto omisso na alteração da uma nova estrutura recursal, em verdade, reivindica a paternidade da resposta política que a sociedade tanto queria de seu pai legislador no exercício político de mecanismos de diminuição da criminalidade. O judiciário como filho mata o pai, por não cuidar bem da mãe como norma protetora de um suposto direito fundamental à segurança pública.

Ao nosso ver o STF está inaugurando um instituto que resolvamos denominar de precedente repristinatório, ao ressuscitar o art. 393 do CPP, revogado pela Lei nº 12.403/11, que assim dispunha em 1940 (ditadura Vargas).

“São efeitos da sentença condenatória recorrível:

I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança;

II – ser o nome do réu lançado no rol dos culpados.”

Esta revogação está relacionada diretamente com a redação nova do art. 283 do CPP, também trazido pela lei 12.403/11), repetindo ipsis literis o art. artigo 5º, LVII, sem ter sido sequer ter sido declarada inconstitucional, como muito bem alertou Lenio Streck em seu artigo “Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional”, na qual demonstra que foi o próprio Ministro Teori que certa feita asseverou em seu voto na Recl. 2.645:

“não se admite que seja negada aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo ‘sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade’”.

Diga-se de passagem, regra que se aplica quando o pronunciamento de inconstitucionalidade for realizado por Tribunais, em razão do princípio da reserva do plenário, como preceitua a Constituição em seu art. 97, CR.

Novamente, é imperioso lembrar das críticas lançadas pela jurista e professora Alemã Ingeborg Maus à Corte Constitucional Alemã, que protagonizou, ao que nos parece, a mesma torre de babel que nossa Corte vem demonstrando ao estabelecer uma ordem suprapositiva de valores.

As Cortes misturam e confundem direitos, normas morais, políticas, argumentos de custo/benefício, realizando ponderação, equivocadamente sobre proporcionalidade entre princípio jurídico da não culpabilidade (esculpido sobre o valor negativo de abstenção no dever de punir pelo Estado) e a política pública afirmativa de segurança pública (calcado no valor de ordenamento público com diretriz nitidamente de moralidade pública).

A primeira de lógica voltada à proteção da pessoa humana e a segunda para a proteção e de proteção do próprio Estado, que, agindo nos limites de seu dever de se abster no papel legiferante ao poder de punir, o judiciário só deveria interferir quando necessário conter violação às garantias fundamentais ao argumento de que o poder político não possa ultrapassar limites impostos pela constituição, em especial à presunção de inocência, afastável somente após o trânsito em julgado.

A professora realiza uma abordagem jurídica sob uma perspectiva eminentemente política na Teoria do direito e teoria política no capitalismo industrial em seu artigo publicado em 1989 intitulado de “Judiciário como superego da sociedade. “O papel da atividade jurisprudencial na “Sociedade órfã” em especial, quando da freqüente atuação deste órgão como verdadeiro parlamento ou última instância da definição de todos os valores de uma sociedade.” (MAUS, 2000, p. 183)

Nesta toada, vale a transcrição de trecho de seu artigo que, talvez, toque no diapasão do sistema o tom que vem entoando o Poder Judiciário e o papel desempenhado por uma jurisdição constitucional sem limites e o impacto que isso representa para a democracia, verbis:

“Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social — controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social.”

A reprodução da tese contida no acórdão (não publicado ainda) do STF como valor à segurança pública popular fica veemente consagrado pelos Ministros ao se manifestarem que estariam “ouvindo a voz da sociedade” ou deveriam “ouvir a voz do povo” repete a sanha do direito nazista, que de 1933 a 1945 combateram a doutrina jurídico-positivista de interpretação do direito, já que o terror político encontrava no Direito formal um obstáculo de cuja transposição era necessário para uma unidade política do Estado, e para isso, uma total autonomia às interpretações da lei pelo judiciário em relação ao legislativo para não se servirem “das muletas da lei”, tendo sido neste contexto a consagração do juiz como “auxiliar direto da condução do Estado”, bem como o significado de que “O juiz é a corporificação da consciência viva nacional” (MAUS, 2000, p. 197).

No caso brasileiro, esta submissão não se dá por acordo entre executivo e judiciário, mas deliberadamente pelo STF em clara emancipação da relação de um poder sobre outro, conforme preconiza o filósofo búlgaro Tzvetan Todorov, “escapam assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.” (TODOVOV, 2012, p. 18)

 A grande polêmica dos conteúdos valorativos morais que se sobrepõem ao ativismo judicial, e consequentemente a elevação de valores políticos em princípios, adverte Ingeborg no artigo já mencionado, é que valores morais como conteúdo suprapositivo podem sublimar, “propriedades legais específicas que, de acordo com Marcuse, substituíram as orientações morais pessoais pelas diretivas imediatas de cunho impessoal da sociedade industrial.”

Atualmente esta sociedade industrial ao se consolidar capitalista, mais especificadamente de consumo, alerta Luc Ferry (FERRY, 2015, p. 35-40), empregando a teoria econômica de um dos maiores economistas do século XX, Joseph Shumpeter, na qual se baseia como dado fundamental à sua teoria ao capitalismo, o que denomina de “destruição criadora”, mas que Ferry demonstra se tratar na verdade de uma “inovação destruidora”, “que se aplica fora da esfera econômica” e que se liga estreitamente com o que estamos demonstrando:

“Deixar o Iphone 4 cair na água raramente dá origem ao Ihpone 5; em compensação, a invenção do Iphone 5 torna pouco a pouco o IPhone 4 ultrapassado! A afirmação parecerá trivial para não dizer francamente tola, mas tem o mérito de insistir no aspecto intrinsicamente destruidor da lógica da inovação pela inovação. Compreender isso é essencial para que se possa perceber não só que esse princípio fundamental do capitalismo não se restringe apenas ao campo da economia, mas também por que e como ele se estende a partir de agora a todos os setores da vida moderna. A começar pelos costumes e até mesmo a vida moral.”

Na obra Ferry identifica um fenômeno inerente ao capitalismo que são as inovações, que dão azo à destruição de produtos anteriores e este movimento atingiu a imprensa através das mídias rápidas, obrigando-as se renovarem já que sua principal função de informar as questões mais importantes do dia a dia estavam sendo destruídas por aquelas em razão da globalização da informação, ameaçando o consumo deste serviço (ninguém mais vê jornal impresso do Jornal do Brasil, por exemplo), sendo necessário, portanto, inovação para manterem a audiência em alta, e consequentemente, seus contratos de publicidade, ou seja, o lucro.

Salienta o autor, que nesta transformação o jornalista culto cedeu lugar ao performático e com isso se perdeu em qualidade de informação, por ter sido necessário a investida nas denominadas “paixões democráticas”, baseado em Maquiavel, sendo necessário, para se manter o público consumeirista, disseminar um conteúdo “apaixonante”, contendo elementos de “indignação”, “medo”, “ciúme ou inveja”, e a mais poderosa de todas, a “cólera”.

Percebe-se, consequentemente, que o populismo penal, que atualmente forma a opinião pública de massas, passou a ser informada de forma passional e não racional e de caráter informativo, de cujo pano de fundo está o fundamento econômico e utilitarista do lucro, não restando  dúvidas de que se o STF pretende dar “voz do povo”, em outras palavras está reproduzindo no processo penal um viés nitidamente utilitarista, muito longe da finalidade pela qual uma Corte Constitucional foi criada, em especial prejuízo ao exercício do mecanismo contra majoritário que deve ser exercido para diminuir os impactos da seletividade punitiva.

Em breve veremos a utilização deste triplo carpado hermenêutico (expressão do Min. Carlos Britto do STF, citado no RMS 029.475), utilizado para relativizar a presunção de inocência, em razão do custo benefício do desgaste político que pode representar ao superego, para relativizar também o conceito de guerra estabelecido no art. 5º, XLVII, na qual dispõe que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX, que por sua vez dispõe que dentre as atribuições do Presidente da República cabe declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização nacional;

Em pouco tempo, ao percebermos que a criminalidade não diminuirá com esta reinauguração de uma tutela penal antecipada, pelo contrário, contribuirá pata um maior encarceramento, anulando os efeitos pretendidos com as audiências de custódia, o STF ao se manifestar sobre o alcance da declaração de guerra invocada por decreto Estadual, entenderá que a guerra pode ser a civil, consequentemente fenômeno também Estadual, como a guerra entre Estado e traficantes, razão pela qual, por simetria constitucional, poderá o Governador assim o declarar e, portanto, autorizado estará a pena de morte, nos moldes do art. 5º, XLVII, relativizado.

Insta salientar, que, o Congresso, contribuindo para um instrumento de resistência estatal em âmbito estadual, à semelhança do que prevê o art. 20 da Constituição da República Alemã, “que legaliza, sem restrições, o direito de resistência, afirmando que “‘contra quem tentar abolir esta ordem [a constituição democrática], todos os alemães têm o direito de resistência, se outros remédios não foram possíveis.’” (AGAMBEM, Giorgio, 2004, p. 23 e 24), já providenciou uma Lei Complementar 34/15 (ainda em trâmite), que autoriza os Estados legislarem sobre processo penal, fortalecendo a ideia de instrumentalização punitiva regional, caindo com uma luva à relativização de garantias fundamentais, pois depois da mutilação constitucional da liberdade como regra para a prisão como regra, a próxima guilhotinada será da vida para a morte como estado de (a)normalidade.

Um contorcionismo jurídico a mais do Supremo, em breve, a morte sairá do Direito Penal subterrâneo para alegrar a superfície de nosso processo penal do espetáculo, com direito ao enforcamento em praça pública a preços populares ou pagamento com alimento não perecível.


REFERÊNCIAS

AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo. 2004, p. 23 e 24

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 101 e ss.

MAUS, Ingeborg. Novos Estudos CEBRAP. Nº.° 58, novembro 2000, pp. 183-202

FERRY, Luc. A inovação destruidora. Ensaio sobre a loiça das sociedades modernas. Trad. Vera Lucia dos Reis. Rio de Janeiro: Objetiva.

TZVETAN, Todorov. Os inimigos íntimos da democracia, trad. Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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