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HC 132.615 e HC 135.100: o STF e a observância da Constituição


Por Fernanda Ravazzano


Na coluna desta semana, analisaremos duas importantes decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal: o HC 132.615 e o HC 135.100. Em ambos os casos, temos como Min. Relator Celso de Mello e a decisão, malgrado pareça inovadora, consiste, em verdade, na aplicação correta dos princípios constitucionais, notadamente do Estado de Inocência, e das regras explícitas no código de processo penal, destacando os artigos 312 e 319.

HC 132.615 E O DIREITO PENAL SIMBÓLICO

O HC 132.615 teve por objeto a concessão de liminar em sede de Habeas Corpus no caso de uma mulher condenada a 09 (nove) anos de reclusão pela prática dos crimes de tráfico de drogas, associação para o tráfico e posse irregular de munição de uso permitido, após ter sido flagrada com 10,61 gramas de cocaína e 06 gramas de maconha. Em sede recursal, lhe foi negado o direito de recorrer em liberdade.

Passemos a analisar a ementa:

Entorpecentes. Tráfico. Quantidade: cocaína (10,61g) e maconha (6g). Associação criminosa para o tráfico. Posse irregular de munição de uso permitido. Condenação penal ainda não transitada em julgado. Interposição de apelação criminal pela paciente. Denegação do direito de recorrer em liberdade. Inconstitucionalidade da cláusula legal que, fundada no art. 44 da Lei nº 11.343/2006, veda, aprioristicamente, a concessão de liberdade provisória. Precedente (Plenário). Inexistência de obstáculo jurídico à outorga de liberdade provisória. Sentença que, no capítulo referente à manutenção da prisão cautelar da paciente, apoia-se em fundamentos que se mostram divorciados dos critérios adotados pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Ausência, no caso, de requisitos mínimos de cautelaridade. Insubsistência da prisão cautelar da paciente. Parecer da Procuradoria-Geral da República pela concessão do “writ” constitucional. Reconhecimento, em favor da paciente, do direito de aguardar em liberdade a conclusão da causa principal até que nela sobrevenha o trânsito em julgado da decisão que a encerrar. “Habeas Corpus” deferido. A privação cautelar da liberdade individual constitui medida qualificada pela nota da excepcionalidade, somente se justificando em situações de real necessidade evidenciadas por circunstâncias concretas efetivamente comprovadas e referidas na decisão que a decretar, observados, sempre, os pressupostos e os fundamentos a que alude o art. 312 do CPP. Precedentes. Revela-se inconstitucional a cláusula legal que, fundada no art. 44 da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), veda, aprioristicamente, a concessão de liberdade provisória nas hipóteses dos delitos de tráfico ilícito de entorpecentes e de associação criminosa para o tráfico, entre outros. Precedente: HC 104.339/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES, Pleno. – Impõe-se repelir, por inaceitáveis, discursos judiciais consubstanciados em tópicos sentenciais meramente retóricos, eivados de generalidade, destituídos de fundamentação substancial e reveladores, muitas vezes, de linguagem típica dos partidários do “direito penal simbólico” ou, até mesmo, do “direito penal do inimigo”, e que, manifestados com o intuito de decretar indevidas prisões cautelares ou de proceder a inadequadas exacerbações punitivas, culminam por vulnerar, gravemente, os grandes princípios liberais consagrados pela ordem democrática na qual se estrutura o Estado de Direito, expondo, com esse comportamento, uma inadmissível visão autoritária e nulificadora do regime das liberdades fundamentais em nosso País. Precedentes: HC 85.531/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. (grifos aditados).

Na apreciação do pleito, o Ministro entendeu, corretamente, que a fundamentação da decretação da prisão preventiva com base exclusivamente na gravidade abstrata do delito não é suficiente para a restrição cautelar da liberdade. Atentou ainda que não havia elementos que conferissem certeza quanto à existência do crime e indícios suficientes de sua autoria (fumus comissi delicti e o periculum libertatis).

O que queremos destacar com maior veemência são dois pontos: o primeiro consiste na afirmação, em excelente momento, de que as decisões meramente simbólicas, pautadas no argumento do “direito penal do inimigo” não devem prosperar; vivemos numa fase extremamente sensível para o processo penal brasileiro, processo que se revela como analisamos semana passada, quase inquisitorial – e não verdadeiramente acusatório como deveria ser – no qual o sujeito acusado da prática de crimes perde seus direitos e garantias, passando a ser encarado como “inimigo” da sociedade, bem como o seu advogado/defensor, tornam-se figuras demonizadas por desempenharem seu papel.

Infelizmente o discurso de máxima punição norteia as decisões da maioria dos juízes – e, inclusive, do próprio Supremo, como vimos no HC 126.292, já objeto de crítica nesta coluna – que, sob o argumento da luta contra a impunidade, decretam a execução provisória da pena, ao arrepio da Constituição Federal, prisões preventivas para averiguação, bem como para a obtenção da delação premiada, claramente ofendendo a ordem constitucional vigente.

O segundo ponto a destacar da decisão do Ministro refere-se à inconstitucionalidade do artigo 44 da Lei 11343/06, cuja redação original veda a concessão de liberdade provisória para os acusados pela prática de tráfico de drogas. Tal questão, malgrado revele-se superada pelo Supremo, como citado na decisão exarada, é extremamente comum aos juízes de primeiro grau e tribunais a aplicação imediata da equivocada redação da lei de drogas. Ora, como já amplamente discutido, objeto inclusive de súmula vinculante n° 26 do STF, não se pode vedar, mesmo em crime hediondo ou equiparado a hediondo, o direito de responder a processo ou a recorrer em liberdade, quer seja em razão do princípio do Estado de Inocência, quer seja em razão da função da pena assumida na lei de execuções penais – lei 7210/84 – como sendo a ressocialização.

Em boa hora o Ministro reforçou os preceitos fundamentais de um processo garantista: Estado de Inocência (ou presunção de inocência), contraditório e ampla defesa, e a liberdade como regra, inclusive o princípio favor libertatis.

HC 135.100 E A “VOLTA” DO ESTADO DE INOCÊNCIA

Creio que em uma tentativa de corrigir um erro histórico e crasso, também em boa hora, foi exarada a decisão do Ministro Celso de Mello no HC 135.100, determinando que não será automática a decretação da prisão preventiva quando houver a confirmação da sentença penal condenatória em segundo grau, devendo ser analisado caso a caso (ou seja, estamos, a princípio, retornando para a situação anterior, da excepcionalidade da custódia cautelar, ainda que no campo teórico, pois sabemos a triste realidade dos nossos tribunais que, sem a autorização do Supremo, já prende desnecessariamente, ao arrepio da CF/88, com a chancela desse, o número de prisões cautelares certamente nos conduziria a um maior estado de coisas inconstitucional…).

Colacionamos a ementa do julgado:

“HABEAS CORPUS”. CONDENAÇÃO PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO (CP, ART. 121, § 2º, INCISOS I E IV). CRIME HEDIONDO. TRÂNSITO EM JULGADO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO. RECURSO EXCLUSIVO DO RÉU. “REFORMATIO IN PEJUS”. VEDAÇÃO (CPP, ART. 617, “in fine”). DECRETAÇÃO, “ex officio”, DE PRISÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA (“CARCER AD POENAM”). INADMISSIBILIDADE. AFIRMAÇÃO, PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL, DE QUE A CONDENAÇÃO CRIMINAL EM PRIMEIRA INSTÂNCIA, NÃO OBSTANTE AINDA RECORRÍVEL, AFASTA A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E FAZ PREVALECER A PRESUNÇÃO DE CULPABILIDADE DO RÉU (VOTO DO DESEMBARGADOR REVISOR). INVERSÃO INACEITÁVEL QUE OFENDE E SUBVERTE A FÓRMULA DA LIBERDADE, QUE CONSAGRA, COMO DIREITO FUNDAMENTAL DE QUALQUER PESSOA, A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA. PRERROGATIVA ESSENCIAL QUE SOMENTE SE DESCARACTERIZA COM O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 5º, INCISO LVII). CONSEQUENTE ILEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. ENTENDIMENTO QUE IGUALMENTE DESRESPEITA A PRÓPRIA LEI DE EXECUÇÃO PENAL, QUE IMPÕE, PARA EFEITO DE APLICAÇÃO DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE E/OU RESTRITIVAS DE DIREITOS, O PRÉVIO TRÂNSITO EM JULGADO DO TÍTULO JUDICIAL CONDENATÓRIO (LEP, ARTS. 105 E 147). INAPLICABILIDADE, AO CASO, DO JULGAMENTO PLENÁRIO DO HC 126.292/SP: DECISÃO MAJORITÁRIA (7 VOTOS A 4) PROFERIDA EM PROCESSO DE PERFIL MERAMENTE SUBJETIVO, DESVESTIDA DE EFICÁCIA VINCULANTE (CF, ART. 102, § 2º, E ART. 103-A, “CAPUT”). PRECEDENTE QUE ATUA COMO REFERÊNCIA PARADIGMÁTICA, E NÃO COMO PAUTA VINCULANTE DE JULGAMENTOS. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.

Percebemos os perigos que acarretam das decisões equivocadas do Supremo. A decisão exarada no HC 126.292 abriu as portas para a execução antecipada da pena, tendo sido comemorada por muitos como adoção do modelo norte-americano (que possui outra realidade e outra infraestrutura do sistema criminal, a começar pela quantidade de delegacias para investigar os fatos) e sinônimo, mais uma vez, de luta contra a impunidade. Há um claro equívoco nessa afirmação, sendo retrato de um discurso populista e bélico.

Felizmente o próprio Supremo já aclarou este ponto, reforçando que a decisão anteriormente proferida no citado Habeas Corpus não possuía efeito vinculante, o que restou cristalizado no julgamento do HC 135.100. No caso em apreço, sem qualquer comentário sobre a necessidade da decretação da preventiva, o juízo de primeiro grau a decretou com fulcro apenas na autorização do Supremo no HC 126.292. Repetimos: em excelente momento a Corte Suprema corrigiu seu erro, reforçando o princípio do Estado de Inocência.

Citamos ainda a Reclamação 23.535 Maranhão, em que o Ministro Edson Fachin que negou seguimento à Reclamação, asseverando, justamente, que a decisão nos autos do polêmico HC que permitia a execução provisória da pena não teria caráter vinculante:

RECLAMAÇÃO 23.535 MARANHÃO

RELATOR : MIN. EDSON FACHIN

RECLTE.(S) :MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARANHÃO

PROC.(A/S)(ES) :PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO MARANHÃO

RECLDO.(A/S) :RELATOR DO HC Nº 351.804 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ADV.(A/S) :SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS INTDO.(A/S) :GILBERTO SILVA DA CUNHA SANTOS AROSO INTDO.(A/S) :ROBERTO CAMPOS GOMES ADV.(A/S) :JOSÉ ANTONIO FIGUEIREDO ALMEIDA SILVA E OUTRO(A/S)

[…] 3. No caso concreto, quanto à possibilidade da execução provisória de condenação criminal, o precedente invocado como violado trata-se de habeas corpus solucionado sob o prisma intersubjetivo, sendo que o reclamante não fez parte da relação processual.

Portanto, não há autoridade do Tribunal a tutelar e, repito, a reclamação não figura como instrumento de uniformização de jurisprudência.

Mais do que benvindas, portanto, as decisões exaradas pelos Ministros.

O ESPANTO NO GARANTISMO

Num primeiro momento a postura do Ministro Celso de Mello nos dois habeas corpus que comentamos pode causar espanto, mas traduzem nada mais que a verdadeira observância dos ditames constitucionais.

Não se pode admitir em um Estado Democrático de Direito que o próprio Supremo Tribunal Federal, guardião natural da Constituição a viole, como visualizamos, sobretudo, no HC 126.292. Não obstante, é necessário que o Pretório Excelso compreenda o grau da repercussão de suas decisões. A Reclamação 23.535 configurou nada mais que o seguimento dos Tribunais às decisões do Supremo, sem interpretá-las (obviamente quando lhes convém).

Se estamos em um estado de exceção, dentro de um estado democrático de direito, em que o discurso da luta contra a impunidade passa a ser a bandeira de pessoas de “bem”, sendo os acusados e seus patronos pessoas do “mal”, não podemos descuidar da importância do papel do Supremo em brigar pela preservação das garantias constitucionais, jamais se podendo admitir sua relativização. Se sem base legal ou sumular os tribunais já restringem direitos e garantias dos investigados/acusados/condenados, exercitando uma interpretação in malam partem¸ quiçá com a autorização da Suprema Corte.

É preciso ter cuidado com os discursos.

_Colunistas-Fernanda

Fernanda Ravazzano

Advogada (BA) e Professora

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