Homem civilizado?
Homem civilizado?
A citação de Hobbes, “o homem é o lobo do homem”, aplica-se perfeitamente ao clássico e atual “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.
A trama traz todas as marcas do estilo inconfundível do autor. A narrativa segue uníssona, os personagens não apresentam nome: são o homem, a mulher, o médico, a mulher do médico, os malvados.
Tudo começa com uma inexplicável epidemia de cegueira: pessoas sãs se tornavam cegas. Os cientistas buscaram explicações, o governo entrou em desespero e começou a tomar medidas extremas, mas nada parava a implacável epidemia. As pessoas atingidas enxergavam um “mar de leite”, uma brancura inexplicável:
Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco (…). (pg. 13).
Com a epidemia se alastrando, o Governo tomou a atitude óbvia de isolar os doentes. A cura não era importante, importante era retirá-los do convívio da sociedade, como os leprosos da Antiguidade:
A lembrança tinha saído da cabeça do próprio ministro. Era, por qualquer lado que se examinasse, uma ideia feliz, senão perfeita, tanto no que se referia aos aspectos meramente sanitários do caso como às suas implicações sociais e aos seus derivados políticos. (…) Em palavras ao alcance de toda a gente, do que se tratava era de pôr de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre amarela (…). (pg.45).
A personagem principal é a mulher do médico. Ela é a única personagem que não é atingida pela epidemia de cegueira. Seu marido, o médico, também ficou cego. Quando chegou a ordem governamental para que ele fosse isolado em uma unidade para cegos, a mulher fingiu que também era cega, a fim de acompanhar o marido onde quer que fosse.
Na unidade para cegos, aos poucos, a civilidade foi desaparecendo do convívio humano, como se o fato de ninguém enxergar nada fosse uma permissão para deixar os “valores” morais de lado. Pouco a pouco, a bárbarie tomou conta, e a assustada mulher do médico era a única a enxergar o terror puro e simples em que a “sociedade” se tornou.
Uma tentativa frustrada de fuga acabou na morte um homem. Como em um campo de concentração, as unidades eram vigiadas por soldados, que matavam ou ameaçavam matar qualquer dissidente. Depois da morte desse primeiro homem, cresceu a revolta dos doentes, isolados de suas famílias, de suas casas, pelas ordens absurdas do Governo.
À tentativa de fuga frustrada seguiram-se outras mortes. A essa altura, os soldados já atiravam a esmo, sem motivo:
Ainda sobre a impressão produzida pelo trágico acontecimento da noite, os soldados que transportavam as caixas haviam combinado que não as iriam deixar ao alcance das portas que davam para as alas, como mais ou menos tinham feito antes, largá-las-iam no átrio, e adeus, passem bem, Os gajos que lá se avenham, disseram. (pg. 88).
O sargento disse ainda, Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a peçonha. (pg. 89).
Os próprios cegos se encarregaram de enterrar os mortos alvejados pelos soldados. Já não havia humanidade:
Há muitas maneiras tornar-se um animal, pensou, esta é só uma delas. (pg. 97).
Mais infectados chegaram. Sujeira, pouca comida para tanta gente, falta de higiene. A barbárie tomou conta do manicômio lotado. Um grupo de cegos, chamados pelo narrador de “os malvados”, começou a cobrar dinheiro em troca da pouca comida que havia disponível para todos.
De barbaridade em barbaridade, esse grupo mais forte começou a realizar estupros coletivos de todas as mulheres da unidade. A essa altura, a desumanidade se tornara a regra. Sobreviver, não importava como, era o que valia.
Fora dali, a epidemia continuava a se alastrar. Outras unidades para cegos se formaram. As cidades foram abandonadas, lojas e supermercados saqueados pela população em fúria. Todo e qualquer vestígio de humanidade e civilidade se acabaram.
A mulher do médico permaneceu a única a enxergar em meio ao caos. Sofreu violência como as outras mulheres. Viu o marido traí-la com outra mulher, como se tivesse se esquecido de que tinha uma esposa, esquecido de que ela ainda enxergava.
A guerra dos grupos contra “os malvados” continuou. A mulher do médico conseguiu matar um deles a tesouradas. Mais mortes ocorreram. Ironicamente, um incêndio que destruiu o manicômio os libertou: os soldados tinham ido embora, todos os que ainda estavam vivos fugiram:
Então, para simplificar, aconteceu tudo ao mesmo tempo, a mulher do médico anunciou em altas vozes que estavam livres (…). O portão está aberto de par em par, os loucos saem. (pg. 210).
Fora da quarentena, após toda a barbaridade que vivenciaram, descobrem que todo o país estava cego, tudo era o caos, nada funcionava, lojas, escolas, Governo, cada qual estava à própria sorte. Matava-se por comida.
O grupo que permaneceu unido era formado pelo médico, sua esposa, a “rapariga de óculos escuros”, que foi a moça com quem o médico traiu sua esposa, um velho, um rapaz estrábico, um homem e sua esposa. Pelas ruas atoladas de lixo, excremento, pessoas cegas andando a esmo, muitas das pessoas não se lembravam mais de seus endereços, de suas casas, de seus nomes:
Como está o mundo, tinha perguntado o velho da venda preta, e a mulher do médico respondeu, Não há diferença entre o fora e o dentro, entre o cá e o lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver. (pg. 233).
No fim, o desorientado grupo vai viver na casa do médico e sua mulher, que não fora invadida e estava ali, como se à espera deles. Nesse grupo, ao contrário dos outros, surgiu o afeto e a solidariedade.
Encerrando a narrativa, da mesma forma que veio, acabou-se a epidemia: todos, aos poucos, voltaram a enxergar.
A estupenda narrativa de Saramago quer questionar o que faz a humanidade ser civilizada, e o que a faz perder essa civilidade. Num mundo de cegos, cada qual mostrou o seu pior, e o caos imperou. De todas as personagens, emerge “a mulher do médico”, única a manter a vista, a lucidez, a ética, a generosidade. Como uma missionária que jamais perdeu a fé, apesar dos muitos momentos de dor e desespero, mantém “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam” (pg. 241).
Uma adaptação cinematográfica da obra foi lançada em 2008, quando o autor Saramago ainda vivia e teria “aprovado” a versão.
REFERÊNCIAS
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.