Imparcialidade: aspectos controversos em face de um sistema processual inquisitório
Diante de um crime, a sociedade, em busca de respostas, vê na condenação do infrator o atendimento ao seu anseio por justiça.
Na prática, o instrumento através do qual desenvolvem-se os atos jurídicos capazes de levar à compreensão dos fatos para se chegar à conclusão sobre a eventual culpa ou a inocência do acusado é o processo penal.
Sendo assim, perante uma situação de conflito de interesses na qual de um lado está o infrator, cujas pretensões são provar sua inocência e manter sua liberdade, e de outro a sociedade, interessada na pretensão punitiva, cumpre ao Estado, detentor exclusivo do direito de punir, solucionar a lide.
“Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que ele se convenceu de ter violado as condições com as quais estivera de acordo. (BONESANA, 1999, p. 61).
Esse direito está expresso nos artigos 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e 11.1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No Brasil, tornou-se expresso com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, consagrando um dos mais importantes Direitos Fundamentais, a presunção de inocência, que assegura ao acusado o status de sujeito de direitos dentro da relação processual, pois, por estar intimamente relacionada à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito, visa garantir o devido processo legal.
Entretanto, no cotidiano forense, devido a influências externas e internas que resultam na estigmatização do acusado, observa-se a mitigação de tal Direito Fundamental, fator que complica sobremaneira o trabalho da Defesa.
Em que pese ser o Estado o detentor do direito de punir, o exercício desse poder fica a cargo de seres humanos, que decidem e julgam intimamente influenciados por seus valores e convicções.
Nesse sentido, é importante destacar que vivemos em uma sociedade conservadora, histórica e culturalmente preconceituosa, para a qual, na seara do processo penal, vale a máxima: “uma vez infrator, sempre infrator”. Por conseguinte, cobra dos juízes e Tribunais decisões cada vez mais rígidas, que, invariavelmente, acabam por violar princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
Soma-se a isso o fato de o Código de Processo Penal brasileiro datar de 1941 e, desde então, ter sofrido apenas alterações pontuais, permanecendo carregado de resquícios inquisitórios contrários ao modelo processual penal acusatório desenhado pela Constituição Federal. Motivo pelo qual mudanças que o adaptassem à ordem constitucional se faziam necessárias e urgentes.
Conjuntura em que foi elaborada a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), que introduziu no Código de Processo Penal os artigos 3º-A, prevendo expressamente o sistema processual penal acusatório, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3º-E e 3º-F, criando e descrevendo as atividades do juiz de garantias, cujas eficácias estão suspensas por tempo indeterminado, de forma a manter inalterada a dinâmica do processo penal, na qual o juiz detém poderes investigatórios e instrutórios, características do modelo inquisitório.
A relação processual é formada por três atores. Na base, encontram-se as partes (autor e réu). No ápice, equidistante das primeiras, está o juiz, terceiro imparcial e desinteressado que deve solucionar o conflito com fundamento nas provas levadas pelas partes no intuito de corroborar cada uma de suas teses.
No modelo processual vigente, em que a iniciativa e gestão probatória está nas mãos do mesmo magistrado que depois proferirá a sentença pautado pelas provas que ele mesmo produziu, não há como se falar em imparcialidade, garantida, segundo Aury Lopes Júnior (2020, p. 91), somente quando existir, além da separação das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade instrutória.
Assim, a solução para efetivar a imparcialidade nos julgamentos passa pela clara definição e separação de papéis dos atores do processo. Portanto, a produção de provas deve ser incumbência das partes. Enquanto ao juiz, caberá ser o garantidor dos direitos do acusado.
Um dos fatores que contribuem para a imagem de um juiz imparcial é a inexistência de envolvimento prévio com o caso sub judice, ou seja, que ele não tenha atuado na fase pré-processual, a fim de preservar sua originalidade cognitiva, uma vez que a tomada de decisões anteriores pode fomentar “pré-juízos” que influenciem a decisão final.
Nesse sentido, torna-se indispensável a figura do juiz de garantias, cuja atuação durante toda a fase pré-processual, incluindo o juízo de admissibilidade da denúncia, o torna responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.
Superada essa fase, a acusação seria distribuída ao juiz do processo, que presidiria a instrução e faria o julgamento. Dessa forma, o magistrado tomaria conhecimento da ação após o término da investigação preliminar, o que garantiria sua imparcialidade na análise e valoração das provas, viabilizando um julgamento justo.
O que se justifica pela teoria da “dissonância cognitiva”, desenvolvida na psicologia social. Segundo a qual, diante de duas ideias divergentes, o indivíduo busca encontrar um equilíbrio cognitivo a fim de reduzir o desconforto causado pela contradição entre seu conhecimento e sua opinião (LOPES JR., 2020, p. 100).
Na audiência de instrução e julgamento o juiz precisa lidar com, no mínimo, duas ideias divergentes (acusação e defesa).
Quando atua na fase pré-processual, cujo objetivo é reunir elementos para que o titular da ação penal forme a opinio delicti, e no momento em que decide pelo recebimento da denúncia, é inevitável que o magistrado construa uma imagem própria dos fatos, intensificando a dissonância.
Portanto, é natural que, para manter a consonância cognitiva, durante a produção de provas ele busque, mesmo que inconscientemente, por elementos que corroborem o juízo pré-constituído, tendendo à condenação.
Ainda sobre a captura psíquica, geradora da dissonância cognitiva, é importante ressaltar dois estigmas sociais que também interferem na imparcialidade: o “passado criminoso” e a classe social.
Infelizmente, ainda se julga pelo passado e pela aparência, violando gravemente o princípio da presunção de inocência e resultando em condenações mais fáceis e penas mais rigorosas para os indivíduos estigmatizados.
O simples fato de figurar como investigado, indiciado, denunciado, acusado ou réu, já cria um estigma.
Se o infrator possuir maus antecedentes ou for reincidente, o demérito é ainda maior.
Saber que o acusado possui maus antecedentes ou é reincidente traz o “conforto” cognitivo da não dissonância, mascarando a dúvida e solidificando a certeza da culpa, facilitando a condenação.
Por isso, a Defesa precisa atuar de forma a comprovar, além da inocência, a superação da condição anterior. O que pode ser feito expondo a história do acusado e da vítima, de forma a ampliar a visão do julgador, a fim de que tenha mais elementos para analisar o comportamento que levou ao cometimento do delito. Frisa-se que é necessário manter a lealdade processual e o respeito a todos os envolvidos no processo.
Quando o infrator é oriundo de classes marginalizadas, ele é precocemente rotulado como culpado. Novamente, o julgador pautado por convicções preconcebidas irá buscar elementos que consolidem seus “pré-juízos” e sanem o desequilíbrio da dissonância cognitiva, para justificar seu decreto condenatório.
Em ambos os casos, a situação que se agrava nos processos julgados pelo Tribunal do Júri, os quais, naturalmente possuem maior clamor social e contam com a atuação de jurados leigos, cujo processo cognitivo é totalmente contaminado pelos valores da sociedade, que vê na condenação e na privação da liberdade a solução para a criminalidade. Como consequência, para diminuir a dissonância, esses julgadores buscarão, durante a sessão de julgamento, os elementos que reforcem sua ideia original de culpa, formada pelo estigma carregado por todo indivíduo que responde a um processo criminal.
É essencial lutar por um processo penal justo e equânime, livre de estigmas e “pré-conceitos”, porque a condenação penal provoca efeitos devastadores e permanentes na vida de uma pessoa.
A condução do processo penal não precisa apenas ser imparcial, precisa mostrar-se imparcial, pois a impressão de imparcialidade por parte do julgador está intimamente relacionada com o grau de confiabilidade do cidadão na Justiça.
REFERÊNCIAS
BONESANA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
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