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Princípio acusatório e impossibilidade de condenação na hipótese de pedido de absolvição do MP

Princípio acusatório e impossibilidade de condenação na hipótese de pedido de absolvição do MP

A despeito da existência de diversos artigos discutindo este tema, parece importante prosseguir, de forma breve, no debate sobre o princípio acusatório e a impossibilidade de condenação quando o Ministério Público pugna pela absolvição.

Significa isso, na realidade, evitar a subversão das funções das partes no processo criminal, regido pela Constituição Federal, limitando a incidência do sistema penal, a saber, “isso tem relação com o não incremento processual-interventivo” (DIVAN, 2015, p. 485).

O órgão acusador, quando não sustenta a condenação, não tem nenhuma pretensão acusatória, a partir da qual o poder punitivo estatal poderá ser exercido. Ou seja, estará ausente a busca pela satisfação jurisdicional – e a jurisdição é inerte, pois posta em movimento pela ação penal e correspondente insistência.

Não se objetiva mais atribuir ao réu, presumidamente inocente, o estado de culpa, medida excepcional, de modo a não ser possível a imposição de condenação.

Assim, se existe manifestação expressa do Ministério Público pela absolvição do réu, resta afastada qualquer pretensão acusatória, não podendo o Estado-juiz tomar outra decisão senão a absolutória, sob pena de ofensa ao sistema penal acusatório.

Este sistema, com lastro constitucional, pode ser definido como uma “conquista do mundo civilizado, supõe um processo de partes, com perfeita distinção entre as funções de acusar, defender e julgar” (MACHADO, 2007, p. 128-129).

Consequentemente, portanto, existe uma separação entre Ministério Público e Juiz, o que “implica, necessariamente, a definição prévia das funções de cada sujeito processual e o respeito desta divisão no curso do processo” (PLETSCH, 2007, p. 68).

Nesse contexto, deve ser decerto decretada a absolvição do acusado quando assim requer o Ministério Público, como órgão acusador, exatamente porque ausente pretensão acusatória a ser acolhida pelo julgador, em respeito aos princípios do processo acusatório, da imparcialidade, do processo legal e do contraditório.

Aliás, é “defeso ao magistrado afastar a situação mais favorável ao réu, postulada pelo órgão acusador, sob pena de violação do contraditório e da correlação entre acusação e sentença” (Apelação Crime Nº 70055944359, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 17/10/2013).

Na verdade, o artigo 385 do Código de Processo Penal, bem como qualquer outro dispositivo no mesmo sentido, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, exatamente porque instituído no ordenamento jurídico o sistema processual penal acusatório e, justamente por isso, é função privativa do Ministério Público promover a ação penal pública (art. 129, inciso I, da CF). Assim pensa Alexandre Morais da Rosa:

Enfim, cabe ao juiz garantir direitos processuais, sem participação na gestão da prova ou em nome da ilusória verdade real. Diversos dispositivos do Código de Processo Penal não foram recepcionados pela CR/88 e várias leis posteriores que alteraram parcialmente suas disposições são inconstitucionais. Exemplificativamente indicam-se: (…) (d) condenar sem requerimento (CPP, art. 385); (…), dentre outros erros democráticos de quem, muitas vezes, fez o concurso errado e não entende que, ou se joga, ou se julga. (ROSA, 2016, p. 331).

Em igual sentido a decisão, que proferida pela 5ª Câmara Criminal do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no julgamento do Recurso em Sentido Estrito, de relatoria do Desembargador Alexandre Victor de Carvalho, publicada em 27/10/2009:

(...) IV– A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público. A decisão analisou com rara sabedoria o problema, calcando, com acerto, no trinômio pretensão acusatória – sistema acusatório – contraditório, na mesma linha da fundamentação anteriormente exposta. Dessa forma, pedida a absolvição pelo Ministério Público, necessariamente a sentença deve ser absolutória, pois na verdade o acusador está deixando de exercer sua pretensão acusatória, impossibilitando assim a efetivação do poder (condicionado) de penar. (...) Diante da inércia da jurisdição – crucial para o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade – decorrente do ne procedat iudex ex officio, não pode o juiz prover sem que haja um pedido e, como consequência, daí decorre outro princípio: o juiz não pode prover diversamente do que lhe foi pedido. A inclusão por parte do juiz de agravantes que não estavam na imputação representa uma indevida modificação no fato processual. Portanto, inaplicável o art. 385 do CPP e, quando utilizado, conduz a uma grave nulidade da sentença.

Daí porque não pode o Julgador ir além da pretensão acusatória, eis que não há o substrato a justificar a punição do Estado, vale dizer, não pode o Julgador promover ação sem o pedido. Se assim proceder, o Julgador estará julgando de ofício e usurpando o papel no processo que não lhe pertence – atribuindo a si função persecutória em retrocesso ao modelo inquisitorial, o que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

DIVAN, Gabriel Antinolfi. Processo Penal e Política Criminal. Uma reconfiguração da Justa Causa para a Ação Penal. 1. ed. Porto Alegre – RS: Elegantia Juris, 2015. v. 1. 573p.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, 3ª edição revista, ampliada e atualizada, Florianópolis: Ed. Empório do Direito, 2016.

MACHADO, Antônio Alberto. Curso de Processo Penal – Ribeirão Preto: Legis Summa,  2007.

PLETSCH, Natalie Ribeiro. Formação da prova no jogo processual penal: o atuar dos sujeitos e a construção da sentença, p. 68 – São Paulo: ibccrim, 2007.

Gabriel Martins Furquim

Especialista em Direito Penal. Advogado.

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