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Impunidade ou Injustiça? O que tememos mais?


Por Daniel Kessler de Oliveira


Lá pelos idos de 2011 nos corredores da PUC-RS, meu amigo e grande advogado e professor de direito penal, Rafael Soto, cansado com o discurso que ouvia em plenários do júri acerca da impunidade lançou a provocação: afinal o que tememos mais a impunidade ou a injustiça?

Inicialmente poderia ser mais uma das teses mirabolantes que mentes privilegiadas como a de Soto geram a todo instante e ficam longe do alcance da maioria das pessoas, nas quais me incluo.

Todavia, aquele questionamento convocava a uma reflexão. Reflexão esta, aparentemente banal, mas crucial para a compreensão do fenômeno criminal e fundamental para a solução de qualquer processo penal.

Muito se justifica em termos de aumento de penas, de ampliação do direito penal, de prisões mais céleres e duradouras em nome do combate a impunidade.

O discurso midiático adentrou as páginas de processos e ocupa a voz de muitos promotores e juízes, no sentido de culpar a legislação pela impunidade.

Cria-se, com isto, a ideia de que vivemos em um país de leis “frouxas”, onde ninguém vai preso. O curioso é explicar os quase 800.000 presos em terras tupiniquins, mas isto é mero detalhe.

Fato é que o discurso da impunidade vem se infando e ganhando adeptos, onde, para que estas pessoas possam frear a sua impulsão punitivista, o questionamento trazido por Soto ganha a sua especial imprescindibilidade, pois, afinal, tememos mais a impunidade ou a injustiça?

Vale frisar que a impunidade, em si, também é um meio de injustiça e a injustiça também é impunidade, pois ao punirmos a pessoa errada, deixaremos impune o verdadeiro culpado.

Mas o questionamento busca problematizar a questão no sentido de que se possa refletir se tememos mais deixar um culpado impune ou punir um inocente?

Este questionamento é fundamental para que se façam entender todos os discursos garantistas que buscam a efetivação das garantias fundamentais com a defesa das formas processuais.

Todos abominamos a impunidade. Ninguém deseja ver impune alguém que cometeu um delito, mas, certamente, não desejamos cometer uma injustiça de se punir um inocente.

Portanto, sob esta ótica que se busca problematizar, devemos ter em mente que a impunidade não significa punir UM culpado e, sim, punir O culpado e que este nível de certeza da punição correta está, proporcionalmente, ligado a um devido espaço de questionamento, onde possamos avaliar todas as situações e punir quando devidamente comprovado a culpa do, então, acusado.

Não se elimina a impunidade fomentando injustiça, ou seja, não haverá redução de impunidade se punirmos um inocente, muito pelo contrário, pois faremos injustiça e deixaremos culpados impunes.

O discurso vitimizado que busca uma punição a qualquer custo, é compreensível por aqueles que sofreram a violência do crime, mas o Estado não pode avocar para si o papel de vítima.

Há muito já se superou a noção de crime como uma violação ao “contrato social” que deixava o Estado na situação de sujeito passivo de todo e qualquer delito.

Ora, o Estado tem um dever para com a vítima, de buscar a solução do caso penal. Entretanto, possui um dever com toda a sociedade, de efetivar e respeitar as leis postas.

Sendo assim, não pode o Estado-juiz colocar-se como vítima do crime, pois isto representaria o vilipêndio ao basilar princípio da jurisdicionalidade e todas as suas derivações.

Todos que forem vítimas possuem o direito de ver os culpados pelos crimes devidamente processados e punidos e dentro de um tempo razoável para que a demora processual não redunde em sensação de impunidade.

No entanto, todo aquele que vir pesar sobre si uma acusação, deve saber que haverá ali um espaço de questionamento, onde a efetiva comprovação de sua culpa, em um processo justo, precederá a sua punição.

Estes são valores democráticos e a necessidade de se aguardar um processo e de se buscar meios de que este seja justo e igualitário é o preço de uma evolução civilizatória, que deveria ser celebrada ao invés de questionada, quando não, atacada.

Temos a certeza de que nem mesmo a vítima de um crime, aceitaria a punição de um inocente frente ao crime por ela sofrido.

Devemos nos lembrar daquilo que BECCARIA, há muito já nos avisava, no antológico “DOS DELITOS E DAS PENAS”, no sentido de que o combate a impunidade está na certeza da pena e não na extensão desta.

Esta afirmação de mais de dois séculos atrás, se aplica com perfeição aos dias de hoje e ao momento que vivenciamos.

A verdadeira impunidade está naquelas situações em que registramos a ocorrência de um crime numa delegacia de polícia e temos a certeza de que nada será feito para tentar buscar o culpado. Está naquelas situações em que há um corpo caído no chão e ninguém saberá quem foi o culpado, enfim, dentre outras situações em que sabemos que o Estado não possuirá condições de elucidar o ocorrido.

E, vale frisar que, não se trata de uma crítica a nossas autoridades policiais, mas apenas um profundo lamento pela ausência de condições adequadas para que pudessem exercer com qualidade e eficiência o papel que lhes exigimos.

Sabemos que nas condições da maioria das polícias no país, é necessário se escolher quais crimes investigar a fundo, enquanto outros acabam sendo deixado de lado e premiados com a impunidade.

É isto que devemos lutar, mais e melhor policiamento. Policiais preparados e com estrutura adequada para a elucidação de casos criminais.

Com isto, reduziremos a impunidade, sem aumentar a injustiça. Uma investigação bem feita e conduzida dentro dos limites legais e constitucionais reduzirá a possibilidade do erro judicial.

Entendemos, com tudo isto e por muito mais que poderia ser exposto, que não há maior violência estatal do que a punição a um inocente. Nada pode ser mais grave do que a injustiça e, por isto, devemos lutar ferrenhamente para que esta não ocorra.

E o alcance da justiça exige a observância dos meios legalmente trazidos e dos valores constitucionalmente consagrados.

Na célebre frase de AURY LOPES JR, que inspirado em FERRAJOLI afirma que devemos “garantir para punir e punir garantindo”. Sendo assim, o combate a impunidade não pode autorizar, tampouco permitir o risco, do cometimento de injustiças!

_Colunistas-DanielKessler

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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