Imputação penal em órgãos colegiados
Por Fernando Calix
O Direito Penal Econômico passou a proteger valores distintos daqueles protegidos no Direito Penal Clássico, como no caso do crime de homicídio, considerado o padrão da delinquência, como podemos inferir dos ensinamentos de Nelson Hungria:
“O homicídio é o tipo central dos crimes contra a vida e é o ponto culminante na orografia dos crimes. É o crime por excelência. É o padrão da delinqüência violenta ou sanguinária, que representa como que uma reversão atávica às era primevas, em que a luta pela vida, presumivelmente, se operava com o uso normal dos meios brutais e animalescos. É a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada”[1]
A proteção aos bens jurídicos individuais cedeu lugar à tutela de valores supraindividuais e estas alterações de premissas de proteção ensejam uma nova estruturação normativa da tutela penal, sem que o Direito Penal Econômico tenha uma plena autonomia principiológica em relação à matriz liberal da intervenção punitiva.[2]
A eficácia do direito penal resta seriamente ameaçada quando o risco de receber sanções penais se desliza para os níveis hierárquicos mais baixos, carente de poder. Vale observar que de todos os atores que intervém no desenvolvimento da atividade empresarial, o menos adverso ao risco costuma ser o sócio[3]. A propósito, Nieto Marin apresenta a figura do bode expiatório[4], distinguindo entre os voluntários, que aceitam assumir a responsabilidade por alguma recompensa e aqueles sem contraprestação alguma.[5]
É certo que na atual estrutura das empresas a conduta puramente executiva (no sentido de executar uma tarefa) nem sempre é a mais relevante. Ao contrário disto, o papel daqueles situados numa posição hierárquica superior que detém o controle do ente coletivo, em alguns casos, é fundamental. É nesse cenário que surge o que Martinez-Buján Pérez chamou de “fenômeno da excisão”, na medida em que os sujeitos que executam materialmente o fato ilícito não são aqueles que traçaram o plano executivo.[6]
Diversos são os problemas quanto a imputação penal, tanto no aspecto objetivo quanto no subjetivo, nas estruturas empresariais altamente complexas, como sucede com as instituições financeiras e as grandes companhias, como aquelas de capital aberto. São pessoas jurídicas cujo poder de decisão está altamente pulverizado no âmbito dos seus vários órgãos. Essas empresas caracterizam-se pela divisão do trabalho e pela dinâmica delegação e coordenação de funções.
A organização interna de uma empresa tem que garantir sua eficácia e competitividade, ensejando uma organização altamente complexa, gerando, de um ponto de vista vertical, a divisão do trabalho e do ponto de vista horizontal, o respeito ao princípio da hierarquia.
Quando falamos em imputação no âmbito do Direito Penal Econômico e das organizações hierarquicamente organizadas, devemos ter em mente que o crime aqui não tem necessariamente a conduta e o resultado intrinsecamente ligados, ainda que em algumas situações seja possível verificar o resultado, mas não atrelá-lo de forma imediata aquele resultado à conduta.
Tal situação é comum em se tratando de organizações empresariais complexas, porque a ordem para fazer algo pode passar por outro departamento, que detém a informações sobre a potencialidade perigosa daquela ordem, mas a execução material daquela conduta não passa pelo chefe e tampouco pelo departamento.
São crimes praticados em ambientes extremamente complexos, ambientes que possuem um número indeterminado de pessoas que compõem aquela organização. Nesses ambientes, temos duas características principais: a empresa, do ponto de vista vertical, tem como maior característica a hierarquia (subordinação entre os vários órgãos que compõem a estrutura organizacional) e do ponto de vista horizontal a divisão de tarefas e a especialização (departamentalização segundo os sociólogos).
A despeito dos esforços realizados pela doutrina europeia, não se pode afirmar categoricamente que atingimos um grau satisfatório para caracterizar alguns aspectos da conceituação dos crimes omissivos impróprios, ainda mais quando estamos diante da fixação dos seus limites. Tal cenário enseja a criação de uma insegurança jurídica, que vai de encontro com o Direito Penal do Estado Democrático de Direito, submetido ao princípio da legalidade.[7]
Nestas situações em que a mera relação de causalidade entre a conduta e o resultado não justificaria uma sanção penal, teremos que recorrer que recorrer a outros critérios de imputação. Assim sendo, a relação de causalidade não deve ser o único filtro de imputação penal, sendo a conditio sine qua non apenas o primeiro filtro. Posteriormente, há de se analisar a imputação objetiva e, por fim, se a conduta foi praticada com dolo ou culpa. A imputação, destarte, não se esgota na mera relação causal – típica das ciências naturais – existente entre a conduta e o resultado típico (conditio sine qua non), na medida em que dar causa não significa ser penalmente responsável.
No que se refere à imputação objetiva, Claus Roxin estabeleceu alguns critérios como a criação de um perigo ou risco desaprovado pelo ordenamento jurídico a um bem jurídico e a verificação da criação do risco no resultado. Nesse ponto, fundamental a indagação: o simples fato de ser sócio de uma empresa, por si só, já é suficiente para esta imputação?
A resposta, indubitavelmente, deve ser negativa. Deve-se abrir a empresa e verificar como ela funciona concretamente, como é feita a divisão e, ainda que tenhamos normas gerais, temos que olhar a organização empresarial. Não se deve perguntar sobre como ele vai responder, mas a que título, dentro do Direito penal que se diz democrático.
No âmbito do DPE temos diversos cursos causais irregulares, como o hipotético/alternativo, que é um dos pontos mais sensíveis e controvertidos no âmbito dos órgãos colegiados. Incide sobre o desdobramento causal uma situação que não pertence às partes envolvidas, como ocorrido na queda do avião Air France (situação estranha às pessoas, ao piloto ou a torre de comando).
Existe a hipótese do curso causal cumulativo ou adicional, na qual temos uma concorrência de causas, sendo que aqueles que dão motivo à causa desconhece a conduta do outro, não tendo como saber qual das causas que deu o resultado. Temos, também, os cursos causais não verificáveis, aquela na qual incide uma circunstância específica na causa que produz o resultado, como no direito penal do consumidor, em que o sujeito coloca um produto no mercado que, naquele momento era lícito e regular, mas depois, com o avançar da tecnologia, se descobre que ele tem algo que fere a saúde.
Assim sendo, resta evidente que a atribuição de responsabilidade penal não se esgota na relação de causalidade. Da mesma forma, as regras tradicionais de imputação tem se revelado insuficiente para os crimes da sociedade moderna (sociedade de risco).
Por fim, mas não menos importante, ressalta-se que a imputação penal deve ser tratada como uma categoria genuinamente normativa: critérios exclusivamente ontológicos (causa/efeito) são efetivamente insuficientes para resolver os problemas atuais, dai a necessidade de estabelecer a imputação penal como uma categoria normativa, que deve merecer um juízo de valor por parte daquele que realiza a imputação penal (delegado de polícia, no indiciamento, MP, na denúncia e juiz quando sentencia).
[1] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal, volume V, arts. 121 a 136. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1955.
[2] BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. Critérios Político-Criminais da Intervenção Penal no âmbito econômico: uma lógica equivocada. In: FRANCO, Alberto Silva (Coord); LIRA, Rafael (Coord). Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[3] Chamada “transferência de riscos”, originária da expressão inglesa Risk Shifiting.
[4] Em sentido figurado, a expressão é utilizada nos casos em que alguém é escolhido arbitrariamente para se responsabilizar por algo que geralmente não tenha cometido. Também utilizada na cultura espanhol (chivo expiatório) e na cultura norte americana (scapegoatinhg).
[5] NIETO MARTÍN, Adán. La responsabilidad penal de las personas jurídicas: Un modelo legislativo. Madrid: Iustel, 2008.
[6] Neste sentido vide, entre outros, MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho Penal Económico. Parte General. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998. p. 197.
[7] Neste ponto há uma grande discussão acerca do princípio da legalidade, que implica a máxima taxatividade e precisão leis e os crimes omissivos impróprios. Parte da doutrina afirma que o Código, ao se utilizar de cláusulas gerais e vagas se revela claramente antigarantista, na medida em que o legislador fica adstrito ao estabelecimento dos pressupostos gerais do dever de agir e de impedir o resultado, mas nada esclarece quanto ao seu conteúdo. No mais das vezes, remete-se a complementação do seu significado (lei penal em branco) a uma outra lei, a um contrato ou uma situação concreta de criação de risco. Nesse sentido: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al derecho penal contemporáneo, p. 256, Barcelona, Bosch, 1992.