Causalidade e imputação penal nos delitos ambientais
O estudo acerca das subsunções típicas em relação aos delitos ambientais deve ser elucidado a partir da análise dos desdobramentos causais e da imputação do resultado, sendo mais um dos grandes desafios para a Dogmática Penal Contemporânea, dadas as particularidades (e inúmeras variáveis) que envolvem as interações do homem com o meio ambiente.
Há de se considerar que, mesmo nos crimes de perigo, assim como nos crimes formais e de mera conduta, é inegável a ocorrência de um resultado, no mínimo jurídico, que deva ser considerado como decorrente da prática de uma conduta comissiva ou omissiva. Nos crimes materiais, além do resultado jurídico, há mais um elemento a ser vislumbrado: o resultado naturalístico, ou seja, a modificação do mundo exterior ou os efeitos materiais da conduta que possuem relevância para o Direito(SANTORO FILHO, 2001, p. 1).
Entretanto, Guilherme Feliciano, em obra específica sobre o tema, adverte que os problemas de causalidade são diversos dos de imputação, uma vez que apenas os crimes materiais (ou de resultado) é que possuem nexo causal assim definido para fins de análise do tipo penal objetivo(FELICIANO, 2005, p. 53). É preciso promover a uma breve exposição acerca das teorias da causalidade penal.
CUESTA AGUADO afirma que, justamente em relação aos crimes ambientais, não é possível se confundir causa com condição, pois, em muitos casos, a produção do resultado típico dependerá da ocasião em que se pratique a conduta (1999, p. 36 e ss.), sendo esta “um mecanismo que favorece a atuação da causa, servindo-lhe de estímulo, sem, no entanto, condicioná-la”(FELICIANO, 2005, p. 65).
Diante das inúmeras dificuldades enfrentadas pela Doutrina em relação às primeiras teorias da causalidade (v.g. teoria da equivalência dos antecedentes causais e teorias da causalidade adequada e da causalidade relevante), ROXIN, a partir da década de 70, passou a defender a chamada “teoria da imputação objetiva do resultado”, buscando, sobretudo, tratar da imputação do resultado precipuamente com critérios normativos em detrimento do “dogma causal”(CAMARGO, 2001, p. 31).
Segundo ROXIN, na sociedade moderna, várias atividades consideradas úteis para a população contemplam uma série de riscos inerentes, o que deve ser considerado pelo Direito Penal. Com base nesta construção, o resultado só poderá ser imputado objetivamente ao agente que houver criado ou incrementado um risco juridicamente não permitido (ou indevido) para o bem jurídico tutelado pelo tipo penal, e, logicamente, desde que o resultado ocorra da forma tipicamente prevista(ROXIN, 1997, p. 368 e ss.).
De acordo com o estudo acima, não serão imputados os resultados em que o agente: houver atuado dentro dos limites do risco permitido (socialmente compreendido); diminuído o risco para o bem jurídico; se o risco houver sido criado, porém, de forma insignificante ao bem jurídico; tiver diminuído os riscos para o bem jurídico; se o risco não se materializar no resultado típico; e, naqueles casos em que o fim da norma proibitiva descrita no tipo não abranger o resultado tal como ocorrido (mesmo havendo a criação ou incrementação dos riscos)(ROXIN, 1997, p. 368 e ss.).
JAKOBS também inclui, dentro de sua concepção acerca da teoria da imputação objetiva do resultado, a noção de exclusão de imputação estabelecida pelo princípio da confiança, pois assim como os riscos permitidos, aquele princípio deve estar presente em todas as atividades e organizações em que haja a repartição ou a conjugação de tarefas(JAKOBS, 1997, p. 30).
Desta forma, a teoria da imputação objetiva vem como ferramenta normativa não a se excluir ou suprimir totalmente as teorias da sine qua non e a da causalidade adequada ou relevante (ver SANTOS, 2002), pois o que se pretende é limitar o âmbito político-criminal de intervenção punitiva, de forma que o Direito Penal apenas atue subsidiariamente naquelas hipóteses em que haja, de fato, maior contribuição ou incremento para a criação dos riscos sociais.
No âmbito do Direito Penal Ambiental é possível considerar que tal teoria limita, em muito, as hipóteses de imputação, já que traz consigo, critérios normativos (como a noção do risco e da confiança) que podem suprimir a falta de conhecimento científico acerca das leis da causalidade, sem, contudo, ampliar a impunidade ou a punição desmedida e ilegítima. Mesmo diante de tais avanços, HEINE demonstra certa descrença em relação às teorias de explicação causal, pois mesmo nos casos em que estatisticamente se confirme a ocorrência de um dano ao meio ambiente, as condições que determinam tais danos não são seguramente conhecidas.
E, mais: nos crimes ambientais há uma pluralidade de causas que concorrem para a prática dos danos, sendo muito difícil afirmar qual é a causa efetivamente que determinou o resultado típico (HEINE, 1997, p. 56-54). Helena Regina Lobo da Costa, neste mesmo sentido, afirma que a teoria da imputação objetiva “não afasta a necessidade de um conhecimento naturalístico, pré-requisito para a afirmação do incremento do risco” (2010, p. 89). A autora reitera que alguns conhecimentos nomológicos acerca das particularidades que envolvem o meio ambiente são ainda incipientes, já que alguns resultados independem unicamente da ação do homem isoladamente considerada, e que, a longo prazo, só poderiam ocorrer em razão de eventos sinérgicos ou cumulativos(COSTA, 2010, p. 89).
Aliás, segundo seu posicionamento, sem conhecimento certo acerca das relações entre conduta e efeito não é possível haver causalidade, não podendo o julgador suprir os conhecimentos científicos quando estes se fazem necessários(COSTA, 2010, p. 90).
CUESTA AGUADO afirma que a problemática da causalidade não está apenas nos crimes de lesão, em que há um resultado a ser apontado ou não como decorrente da conduta do agente: nos crimes de perigo, precipuamente, desconhecem-se os efeitos sinérgicos que desencadearão ou não um risco(p. 161). HASSEMER(1999, p. 89), por sua vez, conclui que, se o Direito Penal não consegue alcançar uma teoria da causalidade ou de imputação que parta, inequivocamente, da certeza das causas e condições para que o resultado seja imputado ao ser humano, por conduta e risco gerados, não há que se falar em imputação, pois o jus puniendi não pode querer sacrificar o ser humano por ações que não lhe possam ser, objetivamente, atribuídas.
Entretanto, mesmo havendo problemas a serem resolvidos na questão da imputação dos delitos ambientais, faz-se notável reconhecer que o domínio de todas as causas ou condições que influam no curso causal, em hipótese alguma será apreendido pelo juiz, seja em relação às questões específicas do meio ambiente, sejam em quaisquer outras searas. A alternativa que parece ser a mais adequada em termos de tutela penal do meio ambiente no plano da imputação, encontra suporte nas arguições de RODRIGUEZ MOURULLO(2003, p. 300) e de ROXIN(1997, p. 385), conforme a seguir pontuadas.
MOURULLO apresenta uma saída aos inúmeros problemas causais e de imputação, cuja aplicação pode se dar muito bem nos crimes ambientais: segundo o autor a causalidade jurídica não pode pretender se igualar à causalidade fática ou física, seja pela incompatibilidade dos métodos, seja pelos planos distintos de valoração. Deste modo, o que se pode esperar de uma doutrina que possa resolver de forma adequada os problemas de imputação de um resultado a uma conduta, só pode ter como parâmetro as exigências da tipicidade (2003, p. 300).
Em outras palavras: é preciso que tipicamente tal conduta e tal resultado sejam relevantes, no sentido esperado pelo tipo penal. Esta teoria vai de encontro com as alternativas criadas por ROXIN (1997) para se resolver os problemas de imputação objetiva do resultado, notadamente em relação à criação daqueles riscos não permitidos, mas que, por dificuldades práticas, não possam ser imputados (v.g. concorrentes de atuação apartada, indistinta ou simultânea). Para o autor, quando é preciso compreender o âmbito da norma (ou a esfera de proteção da mesma), como critério corretivo da imputação, para que se analise o alcance do tipo, ou seja, o juiz deve averiguar o âmbito causal delimitado tipicamente, já que o conteúdo penalmente relevante deve estar, no mínimo, normativamente registrado, o que, limita, em muito, as inúmeras variáveis na esfera ambiental.
Mesmo que não seja possível substituir o conteúdo da causalidade, ou, de compreender que toda a problemática das causas físicas devam ser referentes à tipicidade, a teoria causal da tipicidade relevante, somada ao critério do âmbito de proteção da norma, favorecem correções nos aspectos de imputação até mesmo nos crimes ambientais.
Diante do exposto, vale compartilhar a mesma conclusão feita por FELICIANO(2005, p. 148), acerca da importância da teoria do âmbito de abrangência da norma para definição de limites de imputação nos crimes ambientais: “o fim de proteção da norma atende a dois papéis primordiais na teoria da imputação objetiva: a. o papel epistemológico (como fundamento teórico complementar à teoria do risco); b. o papel operacional (como critério do juízo de imputação objetiva)”.
Em outros termos, não há dúvidas de que tal critério normativo possibilita uma limitação no âmbito de dependência exclusiva da causalidade física, de forma a legitimar a escolha do julgador condizente com o sistema normativo ao qual ele se apoia, sem se incorrer em excesso por parte daquele.
REFERÊNCIAS
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