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O princípio in dubio pro reo pertence ao Júri brasileiro?

O princípio in dubio pro reo pertence ao Júri brasileiro?

In dubio pro reo. Quem nunca ouviu falar deste princípio? “Na dúvida, deve-se decidir em favor do réu” – quem nunca escutou esta frase?

O in dubio pro reo, pode-se dizer, é um dos princípios mais antigos da história do Direito (não obstante tenha sido distorcido – e continua sendo – em alguns momentos).

Há relatos de que no próprio “período (…) inquisitivo na Europa continental” (ADC 30/DF – STF), de maneira evidentemente hipócrita, dizia-se (no mundo do dever ser, logicamente) que a “condenação criminal dependia de prova plena da responsabilidade criminal do acusado” (ADC 30/DF – STF), “clara como a luz do meio-dia (luce meridiana clariores).

A prova “plena” por excelência exigida na Inquisição era, comumente, obtida através da tortura, assim, os torturados – como não poderia ser diferente – confessavam, assumiam os fatos “imputados”, afinal, violentados e mutilados para tanto.

Com a confissão tinha-se a prova “plena como a luz do meio-dia”[1], quando não substituída (ante a dificuldade de obter a confissão) pela declaração de duas testemunhas (a confissão era a maior das provas, a “rainha” probatória; a existência de duas testemunhas apontando a responsabilidade do pecador era considerado prova suficiente da culpa)[2].

Na verdade, a definição correta para esse período seria: prova escura como a própria escuridão, até porque, contraditoriamente e paradoxalmente, ao mesmo tempo em que se exigia prova plena da culpa do acusado, o ônus probatório, autoritariamente e contraditoriamente, era atribuído a ele – e não ao acusador (que acusava e julgava…)!

O princípio da presunção de inocência, como se sabe, é postulado cardeal, orientador, essencial, estrutural,  imprescindível do processo penal brasileiro, positivado nos mais importantes textos políticos internacionais.

Não haveria modo melhor de homenagear a Declaração Universal de Direitos Humanos, que completara, ontem (10/12/18), 70 anos, do que citando-a e destacando sua relevância jurídica.

Pois bem, esse importantíssimo Diploma Internacional datado de 1948 – no qual expressa os princípios e valores universais, a serem observados pelo mundo todo -, surgiu após períodos de intensa guerra, destruição, mutilação e eliminação do ser humano, cujas características (dos tempos passados) são a insensibilidade, a indiferença e a desumanidade, e consagrou, em seu artigo XI, um relevantíssimo valor internacional: a presunção de inocência. Ipsis litteris:

todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 

No mesmo sentido, a Convenção Européia dos Direitos Humanos de 1950, em seu artigo 6º, item 2, dispõe que

qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.

O Pacto de São José da Costa Rica, igualmente, em seu artigo 8.2, prevê que:

Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.  Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas (…).

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, por sua vez, em seu artigo 5º, inciso LVII, elencou a presunção de inocência, também chamada de preceito da não culpabilidade, como um valor essencial e um direito fundamental, protegido a título de cláusula pétrea (art. 60, §4º, inciso IV) e, consectariamente, em tese[3], insuprimível do ordenamento jurídico pátrio.

Alguns, talvez, poderiam perguntar: mas e o in dubio pro reo?  Afinal, porque, na existência de dúvida, isto é, na inexistência de provas irrefutáveis, inquestionáveis para condenar o réu, o acusado deve ser absolvido?

A resposta é simples: porque TODOS, sem discriminação, devem (leia-se: deveriam) ser presumidos e tratados como INOCENTES até que o Estado, através do seu Órgão acusador oficial, prove, exaustivamente, indubitavelmente, o contrário. Logo: e se o ente estatal não conseguir provar a responsabilidade do réu? E se existirem dúvidas?

Bem: o acusado, inexoravelmente, deve ser absolvido, pois, se todos se presumem inocentes e o Estado não logrou êxito em demonstrar a culpa, o desfecho é imperioso: in dubio pro reo. Na dúvida, absolva-se o sujeito desgraçado, compelido a responder ao processo penal. Na dúvida, absolva-se o réu!

Inclusive, o in dubio pro reo está contemplado no Estatuto de Roma, que, no artigo 66, item 1, consagra a presunção de inocência “Toda a pessoa se presume inocente até prova da sua culpa perante o Tribunal, de acordo com o direito aplicável”; e, no item 3 do mesmo dispositivo, prevê, expressamente, o preceito em voga, literalmente:

Para proferir sentença condenatória, o Tribunal deve estar convencido de que o acusado é culpado, além de qualquer dúvida razoável.

Portanto, o in dubio pro reo é postulado basilar que deve ser assegurado no mundo todo. Está positivado nos mais importantes textos internacionais de direito.

Por conseguinte,  não existindo, no processo penal, certeza para a condenação do réu, por mais que ele seja deselegante, desgraçado, reprovável ou execrável, há de ser absolvido, afinal, o in dubio pro reo e a presunção de inocência são princípios interpretativos que norteiam todo e qualquer caso penal, independentemente de quem seja o acusado.

Todavia, como funciona, na prática, a incidência do in dubio pro reo no Júri brasileiro?

Neste sentido, insta reiterar salutar observação, já alinhavada outrora em Coluna do Canal Ciências Criminais, sob o título A primeira fase do rito do Tribunal do Júri. Um ponto fundamental tem passado despercebido na práxis forense. O Júri brasileiro conta com uma peculiaridade: o in dubio pro reo não é aplicado.  

Explica-se.

Não são raras as condenações de acusados por 4 votos contra 3. É preciso, portanto, dizer o óbvio: se houvesse, deveras, a valoração da dúvida em prol do acusado, tal como o in dubio pro reo determina, o “escore” de votação pela condenação por 4 votos contra 3 votos não resultaria jamais em édito condenatório, senão na absolvição do acusado, afinal, a única mensagem que é transmitida numa votação tão acirrada, tão apertada, tão dúbia, tão incerta e insegura, é a de que o Conselho de Sentença, que representa a sociedade, possui reais e verdadeiras dúvidas quanto à culpa do acusado.

Tanto é assim que o placar foi apertado (4×3) e o réu fora condenado em virtude de – apenas! – um voto!

Isto é: por – apenas! – um voto se está determinando o destino de uma pessoa, jogando-a, na grande maioria das vezes, nas más-morras[4] brasileiras e retirando-a do seu convívio social e familiar.

E essa divergência de – apenas! – um voto, querendo ou não, não representa jamais a certeza necessária que deveria ser exigida para condenar alguém. Não há um mínimo grau de segurança, um juízo de certeza claro como a luz do meio-dia (luce meridiana clariores).

O in dubio pro reo pode ser bem compreendido através do standard anglo-saxônico, na senda de que a

responsabilidade criminal deve ser provada acima de qualquer dúvida razoável (ADC 30/DF – STF).

Afrânio Silva Jardim (2013), com a maestria que lhe é peculiar, leciona que o in dubio pro reo não comporta “aplicação parcial, sob pena de se desfigurar. Ou o benefício da dúvida favorece, sempre e em todos os casos, o réu, ou não se adota o princípio. Não há meio-termo, a plenitude está ínsita no princípio, decorrendo de sua própria natureza.”

Eis a quaestio juris: o in dubio pro reo é aplicado no Júri brasileiro? E as condenações pelo placar de 4×3? Há um juízo de “certeza” e segurança na condenação? Pode-se dizer que a responsabilidade ficou demonstrada além de qualquer dúvida razoável? Três votos para absolver não são razoáveis? Ou o escore acirrado (4×3), ao revés de segurança na condenação, enseja dúvida e insegurança?

Tirem suas próprias conclusões…


REFERÊNCIAS

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito Penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2013.

FEITLER, Bruno. Processos e práxis inquisitoriais: problemas de método e de interpretação. Revista de fontes , v. 1, p. 61, 2014.  Disponível aqui.

JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal: estudos e pareceres. 12. ed. Rio de Janeiro; Editora Lumen Juris, 2013.

KHALED JR., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

KUHN, Guilherme. A primeira fase do rito do Tribunal do Júri. Disponível aqui.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013.


NOTAS

[1] Consoante Khaled Jr. (2013), o procedimento era o seguinte: “o sujeito de conhecimento – inquisidor (interrogador ou investigador) – pergunta ao objeto de conhecimento – inquirido (interrogado ou investigado) – e deste modo obtém a verdade. Se o objeto não responde o suficiente ou o faz sem a clareza ou a precisão demandada pelo sujeito, é violentado até a obtenção da resposta (mediante tortura). O inquisidor ou interrogador deixa de ser um árbitro e passa a ser um investigador; a virtude está do seu lado porque exerce o poder soberano, dado que este se considera vítima (usurpa ou confisca o papel da vítima). Deus já não decide entre dois iguais como partes, mas sim está sequestrado pelo senhor, pelo dominus.”

[2] Consoante Feitler (2014) “ (…) o sistema de provas do Antigo Regime, ou seja, o sistema de provas legais, ao criar todo um método aritmético de qualificação das testemunhas e dos seus dizeres, fazia com que fosse necessário tipificar os relatos de modo que pudessem ser somados uns aos outros (ou subtraídos) de acordo com o teor do que era dito, a origem do conhecimento do fato (de visu ou de auditu), o estatuto social da testemunha e do réu e do possível parentesco entre testemunha e réu. De modo geral, no sistema criminal de Antigo Regime, inspirado do direito romano-canônico da escolástica, eram necessárias duas testemunhas livres de qualquer defeito ou impedimento e com ditos concordantes (sobre a pessoa acusada e o ato delituoso) para se chegar ao que era chamado de uma “prova legal” suficiente para se lavrar uma condenação à pena máxima prevista para um crime, a chamada “pena ordinária”. Caso não se conseguisse esse tipo de prova testemunhal, ou a confissão do réu – que eram as provas plenas por excelência no foro criminal – o réu não poderia ser condenado à pena máxima.

[3] Diz-se em tese, pois, através do poder constituinte originário, isto é, de uma nova Constituição, quiçá, seria possível sua supressão. Além do mais, no mundo da realidade, apesar da presunção de inocência ser um direito fundamental e, assim, ser vedada (no mundo do dever ser) a sua derrogação ou mitigação, a jurisprudência pátria vem diminuindo e restringindo cada vez mais a amplitude de incidência (material) da presunção de inocência.

[4] A expressão é de Amilton Bueno Carvalho (2013, p. 99) e pode ser traduzida como a morte/destruição lenta e dolorosa da personalidade do apenado. Nos termos do autor, “(…) não basta que tu ‘morras’, a tua morte deve ser ‘má’ e no plural ‘más’.”

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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