A inafiançabilidade do tráfico de drogas impede a concessão de liberdade provisória?
A carta magna de 1988, em seu artigo 5°, incisos XLII, XLIII e XLIV, bem como o código de processo penal, nos seus artigos 323 e 324, trazem um rol de crimes e situações nas quais o instituto da fiança não poderá ser aplicado.
Neste rol encontram-se os seguintes crimes: racismo (art. 5°, inciso XLII); tortura, tráfico ilícito de drogas, terrorismo e hediondos (art.5°, inciso XLIII); infrações cometidas por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o estado democrático (art. 5°, inciso XLIV).
Nota-se que a constituição federal não estabelece quais são os crimes passíveis de fiança, ela apenas enumera os que são incompatíveis com o referido instituto. Assim, a fiança não poderá ser concedida, de forma alguma, para esses crimes, visto que a referida vedação é de índole constitucional.
A lei de crimes hediondos (lei 8.072/90), em sua redação original, trouxe a impossibilidade de concessão de fiança e de liberdade provisória para os crimes hediondos e equiparados. Os referidos crimes, em razão da sua gravidade em abstrato, eram inafiançáveis (inafiançabilidade) e insuscetíveis de liberdade provisória.
Ocorre que essa restrição absoluta em relação a possibilidade de concessão de liberdade provisória para os crimes hediondos e assemelhados, sofreu algumas críticas por parte de uma vertente doutrina que, na época, considerou tal vedação inconstitucional, por violar a presunção de inocência, uma vez que a vedação a concessão de liberdade provisória equivaleria a uma prisão obrigatória; a um pena antecipada.
Nessa esteira, em 2006, entrou em vigor a lei de drogas (lei 11.343/2006), que em seu artigo 44, confirmou o que a lei de crimes hediondos já previa, estabelecendo de forma taxativa a impossibilidade de concessão de fiança e de liberdade provisória para o crime de tráfico de drogas, que como se sabe é um crime assemelhado a hediondo, e por isso deve receber o mesmo tratamento rigoroso destinado aos delitos hediondos.
Contudo, em 2007, a lei de crimes hediondos foi alterada pela lei 11.464/2007, e passou a admitir a possibilidade de concessão de liberdade provisória para os crimes hediondos e assemelhados, diferindo, dessa forma, da lei de drogas que inadmite a possibilidade de concessão de liberdade provisória para o tráfico de drogas, que é um crime, conforme já dito, assemelhado a hediondo.
Partindo-se dessa premissa, surgiram diversos questionamentos acerca de qual norma deveria ser aplicada ao tráfico de drogas em virtude da suposta incidência de duas leis distintas, quais sejam, a lei de drogas e a lei de crimes hediondos. Qual lei deve ser aplicada para o crime de tráfico de drogas?
A lei de drogas que veda a concessão da liberdade provisória ou a lei de crimes hediondos que admite tal possibilidade? A lei de drogas prevalece em detrimento da lei de crimes hediondos? O tráfico é suscetível de liberdade provisória?
Segundo Nuccci (2013, p.20):
[...] há vários fatores contrários à interpretação literal do art. 44 da Lei de Drogas. Outro deles é a modificação introduzida pela Lei 11.464/2007, que alterou a lei de Crimes Hediondos, passando a prever, no art. 2°, o seguinte: os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...) II- fiança. Retirou-se a proibição à liberdade provisória, sem fiança.
Para Marcão (2010, p. 40):
Conforme sempre sustentamos, a Lei 11.464/07, que deu nova redação ao disposto no inciso II do art. 2° da Lei n° 8.072, retirando a proibição genérica, ex lege, de liberdade provisória, em se tratando de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo, derrogou o art. 44 da Lei n° 11.343/2006 (Lei de Drogas), de maneira que a vedação antecipada e genérica ao benefício da liberdade não subsiste no ordenamento jurídico vigente.
Conforme se pode observar dos posicionamentos doutrinários, a entrada em vigor da lei 11.464/2007, que alterou a lei de crimes hediondos, deve prevalecer em face da lei de drogas. Contudo, este não foi o posicionamento adotado, em um primeiro momento, pelos Tribunais Superiores, que continuaram inclinados no sentido de proibir a liberdade provisória para, neste caso específico, o tráfico de drogas.
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. RELAXAMENTO. CRIME HEDIONDO. LIBERDADE PROVISÓRIA. INADMISSIBILIDADE. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL. DELITOS INAFIANÇÁVEIS (INAFIANÇABILIDADE). ART. 5º, XLIII, DA CF. ORDEM DENEGADA. I - Os crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico são de natureza permanente. O agente encontra-se em flagrante delito enquanto não cessar a permanência. II - A vedação à liberdade provisória para o delito de tráfico de drogas advém da própria Constituição, a qual prevê a sua inafiançabilidade (art. 5º, XLIII). III - Ordem denegada. (HC 98340, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 06/10/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-05 PP-01088 RT v. 99, n. 891, 2010, p. 539-541)
Observa-se que, o Supremo Tribunal Federal se posicionava no sentido de que proibição à liberdade provisória para o tráfico vinha da Constituição; vinha da inafiançabilidade do referido crime. Valendo ressaltar ainda que segundo o próprio STF, a alteração dada pela lei 11.464/2007 na lei de crimes hediondos em nada interferia na lei de drogas, haja vista esta ser mais específica em relação àquela.
Recentemente, em maio de 2012, o Supremo Tribunal Federal, por meio do habeas corpus de n° 104339, entendeu que a expressão “e liberdade provisória”, constante do caput do artigo 44 da Lei n° 11.343/2006 é inconstitucional.
Ante o exposto, é correto afirmar que o HC n° 104339 foi de fundamental importância, pois estabeleceu que é possível o pedido de liberdade provisória no crime de tráfico. Assim sendo, no tráfico, bem como em qualquer conduta hedionda ou assemelhada, deve-se analisar os requisitos do artigo 312 do código de processo penal para ver se é caso ou não da decretação da custódia cautelar.
Em outros dizeres, o juiz deve analisar se estão presentes os requisitos da prisão preventiva para que a segregação cautelar possa ser possível, sendo ilícita, portanto, a decretação da prisão preventiva de forma automática, em razão de uma vedação com previsão apenas em lei infraconstitucional, e que está em total desacordo com a constituição.
A constituição vedou a fiança, mas não vedou a liberdade provisória sem fiança, sendo assim, cabe liberdade provisória sem fiança nos crimes de tráfico de drogas, bem como nos hediondos. Isso porque, a inafiançabilidade das referidas condutas não é empecilho para liberdade provisória.
Valendo ainda dizer que a proibição da liberdade provisória contraria postulados constitucionais, devendo-se, portanto, analisar a possibilidade de concessão deste benefício a partir do que está disposto no artigo 312 do código de processo penal, pois a prisão em flagrante sendo legal, e estando ausentes os requisitos que autorizam a decretação prisão preventiva, a concessão da liberdade provisória se faz necessária.
Segue abaixo a ementa do HC n° 104339, que apesar de ter sido parcialmente deferido, possui significativa importância por ter sido o divisor de águas no posicionamento adotado do STF acerca da concessão do benefício da Liberdade Provisória.
Habeas corpus. 2. Paciente preso em flagrante por infração ao art. 33, caput, c/c 40, III, da Lei 11.343/2006. 3. Liberdade provisória. Vedação expressa (Lei n. 11.343/2006, art. 44). 4. Constrição cautelar mantida somente com base na proibição legal. 5. Necessidade de análise dos requisitos do art. 312 do CPP. Fundamentação inidônea. 6. Ordem concedida, parcialmente, nos termos da liminar anteriormente deferida. (HC 104339, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-239 DIVULG 05-12-2012 PUBLIC 06-12-2012).
Conclui-se, portanto que inafiançabilidade nada tem a ver com impossibilidade de concessão de liberdade provisória. A fiança e a liberdade provisória são institutos distintos e autônomos. Assim, pode ser concedida a liberdade provisória com ou sem fiança, independentemente da natureza do crime.
E em relação ao tráfico de drogas, por ser vedada a fiança, cabe apenas a liberdade provisória sem fiança. Entender o contrário implicaria em aceitar a prisão cautelar obrigatória para o crime de tráfico de tráfico de drogas, o que configuraria uma pena antecipada.
REFERÊNCIAS
LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 4° Edição. São Paulo. Editora Saraiva. 2013.
MARCÃO, Renato. Liberdade Provisória em Crime de Tráfico de Drogas na Visão do Supremo Tribunal Federal: Artigo 44 da Lei nº 11.343/06 (Lei de Drogas). Publicado em: Revista Magister. 34° Edição. Fev/Mar. 2010.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 8° edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2011.