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Incesto, cultura e natureza humana

Incesto, cultura e natureza humana

Há uma passagem na História da Sexualidade, de Foucault, que abre certo campo de entendimento para o exercício da sexualidade na família. Diz assim:

Não se deve entender a família, em sua forma contemporânea, como uma estrutura social, econômica e política de aliança que exclua a sexualidade, ou pelo menos a refreie, atenue tanto quanto possível e só retenha dela as funções úteis. Seu papel, ao contrário, é o de fixá-la e constituir seu suporte permanente. Ela garante a produção de uma sexualidade não homogênea aos privilégios da aliança, permitindo, ao mesmo tempo, que os sistemas de aliança sejam atravessados por toda uma nova tática de poder que até então eles ignoravam. A família é o permutador da sexualidade com a aliança: transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da aliança. Essa fixação do dispositivo de aliança e do dispositivo de sexualidade na forma da família permite compreender certo número de fatos: que a família se tenha tornado, a partir do século XVIII, lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família; que, por essa razão, ela nasça “incestuosa”. (Michel Foucault. História da Sexualidade, v. 1, p. 118 da 6ª ed.)

É relevante investigar essa posição. Afinal, o trabalho de Foucault no campo da constituição da subjetividade é monumental, e parte de sua primeira obra – a História da Loucura, de 1950 – até a última (essa História da Sexualidade, em 3 volumes, inacabada e publicada no ano de sua morte: 1984). Passa, ainda, pelos já tornados clássicos As palavras e as coisas, Vigiar e punir, e A arqueologia do saber.

Pois bem. A passagem acima apresenta a “mentalidade” e a constituição da família patriarcal moderna, especialmente no âmbito da sexualidade – que traz como consequência a formação de sua subjetividade –, para além daquelas estruturas lidas no tradicionalismo doutrinário, que derivam do mero aspecto sócio-econômico.

Aduz que toda essa tangência também contorna uma “aliança” que esbarra no campo direto da sexualidade (até mesmo entre si) e que vem parar num dispositivo de poder (“lei” e “dimensão do jurídico”) reforçador da própria aliança que, por sua vez, reforça o sentido da família desde o campo da sexualidade até, em última análise, o campo do poder nela própria imiscuído.

A ideia de “incesto” aventada pelo autor simboliza essa “autoconstituição”, num sentido mesmo visceral, primário, tal como a natureza sexual que não só forma a família como a expande e a relaciona, entre si mesma.

Transmutando esse raciocínio, não é difícil encontrar inúmeras tradições culturais, no passado e no presente, de famílias que se relacionam – sexualmente – entre si, desde uma parentela mais distanciada até o próprio incesto, não obstante aquela primeira “proibição do totem”, destacada em inúmeros trabalhos, com especial destaque para os de S. Freud e J. Campbell.

Assim, é de se elaborar ou revisar (ou aplicar e julgar) as regras de conduta social que de alguma forma reflitam sobre essa perspectiva cultural. Antropologia e psicanálise se unem para a melhor solução. Nesse ponto, Lacan lê Levi-Strauss.

Quanto a nós, devemos cuidar melhor dos tipos penais que aumentam pena quando o agente mantém grau de parentesco com a vítima.

André Peixoto de Souza

Doutor em Direito. Professor. Advogado.

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