Incongruências judiciais
Incongruências judiciais
Na semana passada, em substituição perante uma Câmara Criminal no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, deparei-me com diversas decisões judiciais que, quando não com incongruências, apresentavam-se discrepantes e incoerentes.
Fui surpreendida com condenações criminais, algumas a pena privativa de liberdade, em regime fechado ou semiaberto, por furtos de 03 tubos de desodorantes, 05 blusas femininas, que não ultrapassavam a quantia de R$ 120,00 (cento e vinte reais), totalizando o percentual de 15% do valor do salário mínimo vigente à época do fato, além de outras insignificâncias, não reconhecidas com assento na jurisprudência produzida pelas Cortes Superiores, as quais exigem análise da pessoa do autor, ainda que se lecione que o Direito Penal Brasileiro não é um Direito Penal do Autor, mas do Fato!
No curso, então, desses horrores, avistei decisões que houveram por bem em aplicar de forma automática, sem qualquer fundamentação que não a colação da ementa da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, a execução antecipada da pena, ainda que em sede de sentença de primeiro grau o Juízo “a quo” tenha expressamente consignado a inexistência dos pressupostos e requisitos ao decreto da prisão preventiva, dado o fato de o acusado ter respondido todo o processo criminal solto.
De todas as decisões referidas, chamou-me atenção ter passado batido pelos Julgadores qualquer argumentação que vinculasse essas decisões ao estado da arte do sistema prisional brasileiro e gaúcho, já que quanto a esse último, uma vez diante a ausência de vagas no sistema penitenciário, dada a adoção de uma política do hiperencarceramento, pessoas são amontoadas em Delegacias de Polícia ou em um ônibus ‘adaptado’, o chamado Trovão Azul, sendo algemadas quando não a lixeiras, corrimões, num contexto de violação sistemática de direitos, dadas a degradação dos próprios detidos, desumanizados, bem como das condições dos próprios agentes de segurança.
Mas aí me apercebi que as incongruências vêm de cima, natural, se analisarmos que a estrutura judicial é hierárquica. Digo isso tendo por norte as decisões proferidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Nesse ponto, divido a minha indignação com todos os leitores e as leitoras.
O STF em fevereiro de 2016 admite a execução antecipada da pena em evidente afronta ao direito humano constitucional do estado de inocência, rasgando, portanto o texto Constitucional, embora no ano de 2015, em sede de medida cautelar, tenha reconhecido expressamente o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.
Recentemente, em fevereiro de 2017, em recurso extraordinário onde restou reconhecida a repercussão geral, condena o Estado ao pagamento de indenização por danos morais, haja vista a situação em que se encontra recolhido o preso, de total degradação, dada a superlotação existente.
Entretanto, também recentemente, em fevereiro de 2017, por maioria apenas, a 2ª Turma do STF concede ordem de habeas corpus a uma mulher que se encontrava presa há mais de seis anos por furto de chiclete e desodorante.
Ocorre que a referida decisão foi apertada, sendo que alguns Ministros sequer reconheceram a insignificância, diante a análise da conduta da paciente, fundamento para a chamada reiteração criminosa, a qual impede a aplicação da insignificância, conforme já pontei anteriormente.
Mais recente ainda, em contraposição às decisões do TJRS as quais fiz referência em relação à execução antecipada da pena e a expedição automática do mandado de prisão, temos a decisão do Ministro Marco Aurélio, em sede de habeas corpus, em caso midiático, do Goleiro Bruno, onde se concedeu liminar para determinar a sua imediata soltura, pois embora condenado em sede primeiro grau de jurisdição, havia demora injustificada no julgamento do seu recurso em sede de segundo grau de jurisdição.
Tenho certeza que alguns argumentarão que a ‘justiça’ está sendo feita nas hipóteses referidas, haja vista a análise do caso em concreto, mas gostaria que alguns tantos suscitassem por onde anda a segurança jurídica (talvez um mito brasileiro), e o que me parece mais preocupante: a legalidade!
Não tenho dúvidas que o sistema penal não cumpre com os seus propósitos e refiro-me àqueles ditos como buscados pelo próprio sistema, também não tenho dúvidas que toda decisão judicial é uma decisão política, mas incongruências e incongruências a parte, o Judiciário deve assumir a sua parcela de responsabilidade diante do contexto existente.
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso, nos autos do RE 580252/MS, nos elucida quando reconhece que a superlotação, afinal, somos o quarto país do mundo que mais encarcera, e a precariedade das condições dos presídios correspondem a problemas estruturais e sistêmicos, de grande complexidade e magnitude, que resultam, segundo ele, de deficiências crônicas do sistema prisional brasileiro, sendo que tais problemas atingem um contingente significativo de presos no país, tanto que dá conta de graves deficiências na prestação das assistências previstas na LEP, quiçá material e de saúde, aduzindo para rotineiros registros de casos de violência física e sexual, homicídios, maus tratos, tortura e corrupção, praticados tanto pelos detentos, quanto pelos próprios agentes estatais. Nessa senda, impossível não se concordar com Zaccone (2014), “quanto mais se prende, mais se mata”.
E os exemplos também são atuais.
O Ministro Luís Roberto Barroso, mais uma vez, em seu voto proferido nos autos do RE 580252/MS, já mencionado, aduz que para que se possa combater a lógica do hiperencarceramento e reforçar o caráter subsidiário da prisão, o Direito pode oferecer algumas respostas, entre outras, tais como: ampliação das penas alternativas à prisão e as hipóteses de cabimento de prisão domiciliar monitorada; revisar a política de encarceramento em crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa (o grifo é nosso); revisar a política de drogas, com critérios legais para se diferenciar usuário de pequeno e grande traficante, debate público sobre a descriminalização do consumo e do comércio de drogas; exigir a elaboração de estudo de impacto político-criminal pelo Poder Legislativo previamente à aprovação de qualquer reforma na seara criminal; incentivar políticas de prevenção do crime, por meio das atividades de inteligência policial e prisional e realizar campanhas institucionais de conscientização da população a respeito das condições dos presídios brasileiros e de seu impacto negativo sobre o aumento da violência e a segurança pública (o grifo é nosso).
Mas, deixa claro, também, e, por fim,
“(…) independentemente das medidas a serem adotadas, para que uma ampla reforma seja possível, é preciso, primeiro, que cada um dos poderes e instituições envolvidos reconheça a gravidade da situação e suas responsabilidades em seu enfrentamento, abandonando a inércia que caracterizou a política penitenciária por tantas décadas. É fundamental, ainda, que as instituições relacionadas ao sistema prisional assumam, cada uma, a sua parcela de culpa e empreendam um esforço conjunto e cooperativo no sentido de garantir aos presos os direitos mais básicos que lhe são assegurados pela Constituição.”
É, quem sabe, então, comecemos pelas incongruências? Afinal, parece tristemente que exemplos não nos faltam.
REFERÊNCIAS
ZACCONE, Orlando. Indignos de Vida. A forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2015.