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Inexigibilidade de conduta diversa em crimes dolosos

Inexigibilidade de conduta diversa em crimes dolosos

O conceito normativo de culpabilidade foi forjado a partir de diversas contribuições, ao longo de vários anos. Dentro de uma das construções mais aceitas, o conceito gira em torno dos seguintes elementos: imputabilidade, conhecimento real ou possível do injusto e exigibilidade de conduta diversa (conduta conforme a norma).

Corrente respeitável da doutrina entende não ser admissível a inexigibilidade de conduta diversa como condição supralegal para a aplicação da sanção penal em crimes dolosos.

As razões alegadas giram em torno do argumento de que a reprovabilidade, havendo vontade consciente de praticar o injusto, não pode dar espaço para valoração da exigibilidade, já que um juízo negativo neste sentido, afirmando a inexigência diante de uma conduta dolosa, criaria insegurança, permitindo a existência de critérios subjetivos acerca da aplicabilidade da norma em casos concretos.

Ocorre, porém, que existem situações em que negar a inexigibilidade de conduta diversa em crimes dolosos significa aceitar a extensão da punição para circunstâncias que não correspondem ao socialmente razoável. Apontam-se a seguir dois exemplos, presentes na jurisprudência, na tentativa de sustentar esta afirmação.

O primeiro exemplo é clássico e traz à lembrança uma das obras quem marcam o início da brilhante carreira do escritor John Grisham – Tempo de Matar. 

Trata-se do caso do pai que age dolosamente para matar o agressor sexual de sua filha. Ainda que seja ato contrário à norma que estabelece a impossibilidade do exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 CP), não é difícil encontrarmos casos em que o conselho de sentença absolve o réu, justamente sob o argumento de inexigibilidade de conduta diversa.

Poderá ser argumentado que o rito de júri, baseado na autorização de decisão imotivada que lhe é peculiar e na soberania de seu veredicto (art. 5º, XXXCIII, “c”), permite a existência dessa possibilidade; que de resto seria incompatível com o ordenamento jurídico.

Tratando-se de ações que não se submetem ao rito do júri, seria mantida a alegação de inaplicabilidade do elemento de exigibilidade de conduta diversa como necessário para aplicação da sanção penal.

Discordo respeitosamente deste posicionamento, sustentando essa manifestação com base em outro exemplo, bastante afastado dos crimes contra vida.

O caso é o seguinte: sócios de determinada empresa decidem, unanimemente, em votação livre e informada, não quitar as guias mensais (GPS) referentes ao valor devido à Previdência Social, ainda que parte dos valores que compõem as guias sejam oriundos do desconto efetuado em folha de pagamento.

Incorrem desta forma no ato tipificado no art. 168-A do CP. No exemplo, todos os sócios agem com vontade consciente, informados da antijuridicidade de sua conduta, com pleno conhecimento inclusive da sanção penal aplicável.

Detalhe relevante é que os sócios assim agem com o seguinte fim demonstrável: a empresa está enfrentando dificuldades econômicas sérias, resultantes da inadimplência de clientes e do cenário econômico nacional.

Procurando manter o empreendimento vivo, renegociam as dívidas de seus clientes, passando a receber durante certo período apenas o necessário para manter a empresa funcionando minimamente, sem, contudo, conseguir arcar com todos os encargos, inclusive os valores referentes ao INSS, acima citados.

Qual seria a sentença constitucionalmente razoável, tendo em vista o cenário descrito?  A conduta é típica e antijurídica. Não parece ser prudente ou coerente alegar Estado de Necessidade, com o intuito de afastar a antijuridicidade.

Ainda que esta possa ser uma saída “garantista”, possui obstáculos que merecem consideração cuidadosa. O primeiro tem que ver com o fato de que dificilmente, levando em conta a jurisprudência pátria, esta tese seria aceita.

Já é muito difícil conseguir a apreciação da tese de estado de necessidade em casos envolvendo bens jurídicos sensíveis, como a relação agente/vida; que dirá tratando-se de situações em que o bem jurídico a ser sustentado em equivalência é a função social da empresa ou algo semelhante.

Além disso, a obrigatoriedade em demonstrar que a situação “não foi provocada por sua vontade” e que esta “não podia ser evitada” (art. 24 C P), no caso em tela, gera grande risco de insucesso para defesa.

Conseguir provar que os sócios agiram de modo suficientemente prudente para evitar chegar à situação econômica que levou ao quadro descrito é bastante difícil.

Ainda mais, permitir que o juízo acerca do estado necessidade seja alargado para compreender situações como a descrita parece não condizer com sua construção histórica.

Equivaler o caso em análise com os exemplos clássicos em que o estado de necessidade é suscitado gera um constrangimento epistemológico e social sensível.

Diante da redação do CP brasileiro, que adota a teoria unitária (art. 24 CP), alegar nos casos em comento o estado de necessidade como excludente da ilicitude dificilmente logrará êxito.

Com base nos apontamentos acima expostos, parece mais aceitável a tese de que aqueles sócios – comprovada a situação econômica severamente desfavorável, assim como a tomada de medidas idôneas para reversão do quadro no tempo futuro, aliada a sacrifícios financeiros pessoais dos próprios sócios aptos a demonstrar que não houve má-fé (tentativa de lesionar os funcionários mantendo o nível de lucro dos sócios) – agiram de modo socialmente compreensível.

Dito de modo tecnicamente adequado: agiram de modo em que não se pode exigir comportamento adverso.

Sustenta-se desta forma a possibilidade de afastar a culpabilidade, mesmo em crimes dolosos, com base na inexigibilidade de conduta diversa.

É preciso admitir que os tribunais não parecem inclinados a aceitar a tese delineada. Uma rápida pesquisa demonstra a equiparação da exigência probatória para o estado de necessidade e a exigibilidade de conduta diversa, numa desvirtuação destes conceitos, de modo a colocá-los sob o mesmo ônus argumentativo.

Ainda assim, defende-se que os casos deverão ser analisados cuidadosamente, de modo individual. Não seria democraticamente aceitável a definição apriorística de que esta categoria da culpabilidade seja inaplicável em delitos cometidos dolosamente.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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