Artigos

Infiltração de agentes é atividade de polícia judiciária


Por Francisco Sannini Neto


A infiltração de agentes encontra previsão legal na Lei de Drogas e mais recentemente na Lei 12.850/13, que trata das Organizações Criminosas. Foi este diploma normativo, todavia, que efetivamente estabeleceu, ainda que de maneira tímida, o procedimento para a concretização desse importante meio de obtenção de prova.

Tendo em vista que nosso ordenamento jurídico não conceitua a infiltração de agentes, esta tarefa coube a doutrina especializada. Assim, podemos definir esse procedimento como uma técnica especial, excepcional e subsidiária de investigação criminal, dependente de prévia autorização judicial, sendo marcada pela dissimulação e sigilosidade, onde o agente de polícia judiciária é inserido no bojo de uma organização criminosa com objetivo de desarticular sua estrutura, prevenindo a prática de novas infrações penais e viabilizando a identificação de fontes de provas suficientes para justificar o início do processo penal.

Sobre o tema, são precisas as lições de NUCCI ao afirmar que a infiltração de agentes

representa uma penetração, em algum lugar ou coisa, de maneira lenta, pouco a pouco, correndo pelos seus meandros. Tal como a infiltração de água, que segue seu caminho pelas pequenas rachaduras de uma laje ou parede, sem ser percebida, o objetivo deste meio de captação de prova tem idêntico perfil (NUCCI, 2016).

Note-se que no contexto apresentado a infiltração de agentes denota certa passividade do Estado, que deixa de agir diante da constatação de crimes graves, mas sob a justificativa de alcançar um interesse maior (desarticulação da organização criminosa), o que está absolutamente de acordo com o postulado da proporcionalidade, assegurando-se, assim, a eficiência da investigação criminal, nos moldes da ação controlada[1].

A doutrina costuma classificar a infiltração de agentes em duas modalidades: a) Light Cover ou infiltração leve, com duração máxima de seis meses e que exige menos engajamento por parte do agente infiltrado; e b) Deep Cover ou infiltração profunda, que se desenvolve por mais de seis meses, exigindo total imersão no bojo da organização criminosa, sendo que na maioria dos casos o agente infiltrado assume outra identidade e praticamente não mantém contato com a sua família. Nos termos do artigo 10, §3º, da Lei de Organizações Criminosas, admite-se as duas formas de infiltração, uma vez que este procedimento pode ser adotado por seis meses, mas com a possibilidade de renovações.

Visando dar mais força ao procedimento investigativo, é recomendável que ao representar pela infiltração, o delegado de polícia também represente para que o magistrado autorize ao agente undercover que proceda a apreensão de documentos de qualquer natureza, realize filmagens ou escutas ambientais, afinal, o dinamismo desta técnica investigativa exige a adoção de tais medidas acautelatórias.  

Feitas essas breves considerações acerca do instituto, o objetivo central deste trabalho é defender a tese de que a infiltração de agentes só pode ser efetivada pelas polícias judiciárias (Polícia Civil ou Federal). Como primeiro argumento, destacamos que o procedimento em análise encontra-se na Lei 12.850/13 sob o título “Da investigação e dos meios de obtenção de provas”. Ora, parece-nos que o legislador foi claro ao determinar a natureza jurídica da infiltração de agentes como um instrumento de investigação criminal.

Reforçando esse entendimento, o artigo 10, caput, dispõe o seguinte:  “A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites”. (grifamos).

Conforme se depreende do dispositivo, o legislador deixa claro que a infiltração de agentes deve ser utilizada em “tarefas de investigação”, fazendo menção a necessidade de representação do delegado de polícia ou a sua manifestação (parecer) no caso de a medida ser solicitada pelo Ministério Público. Isto, pois, o delegado de polícia é o chefe da polícia judiciária, sendo a autoridade com aptidão para verificar as condições técnicas e estruturais para a realização deste meio investigativo.

Se não bastasse, o artigo 10, §2º, da Lei, exige que a infiltração de agentes seja utilizada apenas em último caso, quando não houver outros meios de provas disponíveis. A razão para tal determinação é óbvia e visa resguardar a integridade dos policiais diante dos riscos intrínsecos ao procedimento. Isso significa que o juiz só deve autorizar esta medida diante do exaurimento de outras técnicas investigativas, o que, uma vez mais, inviabiliza a infiltração de agentes que não compõem os quadros das polícias judiciárias, responsáveis, nos termos da Constituição da República, pela apuração de infrações penais.

Sobre essa característica de ultima ratio da infiltração, cabe aqui a seguinte pergunta: considerando que Lei 9.296/96, que trata das interceptações telefônicas, também estabelece que este procedimento só poderá ser realizado quando não for possível a obtenção de provas por outros meios, qual dos procedimentos investigativos deve ser adotado em primeiro lugar? A infiltração de agentes ou a interceptação telefônica? Em princípio, entendemos que a infiltração de agentes deve ser subsidiária à interceptação telefônica, especialmente em virtude do risco que este procedimento acarreta aos agentes policiais. Num confronto entre o direito de privacidade do investigado e o direito à vida ou integridade física do policial, devem prevalecer estes últimos, inclusive com base nos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.

Conclui-se, pelo exposto, que integrantes de outros órgãos ligados à segurança pública não podem atuar como agentes infiltrados, uma vez que suas funções não estão relacionadas com a finalidade da medida, que, conforme destacado, tem sua natureza vinculada à investigação criminal, de atribuição das polícias judiciárias. Aliás, considerando o risco e a complexidade da infiltração policial, a sua adoção só poderia mesmo se justificar na seara criminal, onde estão em jogo os bens jurídicos mais importantes, devendo o procedimento ser concretizado apenas por agentes com a necessária preparação física, psicológica e técnica, de acordo com o caso.

Não é outro o entendimento de SANCHES e BATISTA (2014), senão vejamos:

Como “agentes de polícia” devem ser entendidos os membros das corporações elencadas do art.144 da Constituição Federal, a saber: Polícia Federal propriamente dita, rodoviária e ferroviária; e Polícia Estadual (civil, militar e corpo de bombeiros), observadas, nesta última hipótese, a organização própria de cada unidade da federação. Mas nem todos estes órgãos possuem atribuições investigativas. Com efeito, o inc. I deste dispositivo constitucional atribui à polícia federal a tarefa de “apurar infrações penais”. Já o inc.IV, §4º do art.144 da CF, comina às polícias civis estaduais essa tarefa investigativa. São, portanto, os policiais federais e civis aqueles habilitados a servirem como agentes infiltrados.

Nesse cenário, pode-se afirmar que é ilegal a infiltração realizada por policial militar, por exemplo, ainda que sob o comando do delegado de polícia. Da mesma forma, é vedada a infiltração de agentes do Ministério Público nas investigações que correrem sob a responsabilidade deste órgão.[2] Por fim, os agentes da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) também não estão autorizados a executar este procedimento, muito embora seja recomendável o apoio técnico às polícias judiciárias visando uma maior eficácia da investigação.

Ainda sobre quem pode atuar como agente infiltrado, diferentemente de GOMES e SILVA (2015), entendemos que a Polícia Militar jamais poderá desenvolver este procedimento, mesmo quando atuar nas funções de polícia judiciária para a apuração de crimes militares. Isto, pois, trata-se de uma técnica especial de investigação só admitida nos casos de organização criminosa ou de tráfico de drogas, delitos de competência da Justiça comum, cuja apuração caberá às Polícias Civil ou Federal.

Por fim, também não se admite a infiltração de particulares em organização criminosa, uma vez que a Lei é clara ao limitar o procedimento aos “agentes de polícia”. Entretanto, nada impede que um particular já integrante da organização atue de maneira velada como informante da polícia, auxiliando na identificação de fontes de prova e na prevenção de crimes, situação em que o ideal seria a formalização de um acordo de colaboração premiada, viabilizando, assim, a concessão de um benefício legal ao informante.

Em conclusão, reiteramos que a infiltração de agentes constitui um importante meio de obtenção de provas (técnica especial de investigação) de atribuição exclusiva das polícias judiciárias (Civil e Federal) e vinculado ao parecer do delegado de polícia, mesmo nos casos de investigações criminais promovidas pelo Ministério Público.

É certo que a medida em questão pode gerar resultados extremamente eficientes no combate ao crime organizado. Advertimos, todavia, que a viabilidade desse procedimento é muito questionável em virtude da falta de policiais aptos para a sua realização. Tal crítica ganha ainda mais força nas cidades do interior, que, além de possuírem poucos policiais em seus quadros, são prejudicadas pelo fato de seus agentes serem conhecidos da população local.

Com o objetivo de mitigar esse problema, entendemos que deveriam ser criadas unidades regionais especializadas, formadas por policiais de várias cidades diferentes que pudessem atuar em situações específicas de infiltração. Mais do que isso, os agentes deveriam ser submetidos a cursos frequentes de capacitação técnica e psicológica, cabendo ao Estado a criação de benefícios que fomentassem o interesse dos policiais em atuar como infiltrados. Somente assim nós daríamos ao procedimento de infiltração a eficácia imaginada pelo legislador.


REFERÊNCIAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; Nahur, MArcius Tadeu Maciel. Criminalidade organizada & globalização desorganizada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014.

GOMES, Luiz Flávio; SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações criminosas e técnicas especiais de investigação: questões controvertidas, aspectos teóricos e práticos e análise da Lei 12.850/2013. Salvador: Juspodivm, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. 9ª ed. Vol. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2016.

SANCHES CUNHA, Rogério; BATISTA PINTO, Ronaldo. Crime Organizado – Comentários à nova lei sobre o Crime Organizado – Lei nº12.850/2013. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias – Teoria e Prática de Polícia Judiciária. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.


NOTAS

[1] Neste meio de obtenção de prova a autoridade policial pode deixar de agir diante do que se acredita ser uma conduta criminosa, postergando sua intervenção para um momento mais oportuno do ponto de vista probatório.

[2] No mesmo sentido, SANCHES CUNHA, Rogério; BATISTA PINTO, Ronaldo. op.cit., p. 99.

_Colunistas-FranciscoNeto

Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

Artigos relacionados

Botão Voltar ao topo