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O quanto somos influenciados pela criminologia positivista?

O quanto somos influenciados pela criminologia positivista?

Você já parou para pensar o quanto somos influenciados pela chamada criminologia positivista, ou melhor, científica? O quanto o seu discurso ainda se encontra presente não apenas nas leis, nas práticas, mas nas decisões judiciais e de política criminal?

Isso se torna de extremo relevo quando verificamos que o dito nascimento da criminologia enquanto ciência dá-se no século XIX, sob a égide do positivismo criminológico, sendo certo relembrar com Zaffaroni que o passado, nesse âmbito, nos mostra muito mais um zoológico de fósseis vivos, que de forma refinada e transmutada, adaptada à contextualidade, diríamos, permanece no discurso criminológico que nasce bem antes da própria ciência chamada criminologia, mas com os demonólogos na inquisição.

Por isso, a influência não apenas da criminologia positivista, mas de diversas escolas e teorias gestadas no âmago da ciência dita criminológica, convivem diuturnamente com a atualidade.

De acordo com García-Pablos de Molina, a etapa científica da criminologia começa no final do século passado com o positivismo criminológico e com a chamada scuola positiva italiana que foi encabeçada por Lombroso, Garofalo e Ferri.

Surge como crítica à criminologia dita clássica, aqui cumprindo um amplo papel a Beccaria, um dos seus adeptos, dando lugar a uma polêmica doutrinária sobre métodos e paradigmas, ou seja, do método e paradigma científico (o método abstrato e dedutivo dos clássicos, baseado no silogismo), frente ao método e paradigma empírico-indutivo dos positivistas (baseado na observação dos fatos, dados).

A scuola positiva italiana, no entanto, segundo referencia o mesmo autor, apresenta duas direções opostas: a antropológica de Lombroso e a sociológica de Ferri, as quais acentuam a relevância da etiologia do fator individual e social em suas explicações do delito.

Também é ele quem nos diz que o positivismo criminológico representa o momento científico de acordo com a famosa lei de Augusto Comte sobre as fases e estágios do conhecimento humano: a superação das etapas “mágica” ou “teológica” (pensamento antigo) e “abstrata” ou “metafísica” (racionalismo ilustrado).

Significa, também, uma mudança radical na análise do delito por que os clássicos haviam lutado contra a irracionalidade do castigo do antigo regime e a missão histórica do positivismo seria lutar contra o delito, por meio de um conhecimento científico de suas causas, com o objetivo de proteger a ordem social, ou seja, a nova ordem social da nascente sociedade burguesa industrial à época, o que bem se verifica por meio da sua teoria da pena.

Não sem razão Zaffaroni (2013) aponta para o salto do contrato social à biologia, pairando aqui a influência de Darwin por meio de uma leitura afeita à Spencer de uma sociedade enquanto organismo, fundada na natureza e revelada pela ciência, mas detidamente determinista.

Com o nascimento da polícia na mesma época, o discurso legitimador se deu por meio da sua união com a medicina, instalando-se dessa forma um evidente reducionismo biológico racista, que será utilizado ao longo do século XX, autorizando inúmeras barbáries, as quais vão embasar posteriormente, em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos.

De acordo com García-Pablos de Molina (2006), a escola positiva italiana e o próprio positivismo carecem de raízes liberais, pois propugnam por um claro antiindividualismo, inclinado a criar obstáculos à ordem social, e se caracteriza, ademais, por sobrepor a rigorosa defesa da sociedade frente aos direitos do indivíduo e por diagnosticar o mal do delito com simplistas atribuições a fatores patológicos (individuais) que exculpam de antemão a sociedade. Professa, assim, uma concepção classista (como se os ricos fossem portadores de uma moral maior, jamais delinquindo) e discriminatória da ordem social, imbuída de preconceitos e de acordo com o mito da “diversidade” do delinquente.

Muito se credita a Lombroso, o que Zaffaroni (2013) chama de “apartheid criminológico”, mas a bem da verdade, conforme o próprio autor professa, o discurso biologista médico começou décadas antes da própria obra e dos estudos de Lombroso, quando se apresentaram teorias que pretendiam expor uma etiologia orgânica do delito.

Lombroso, conforme expõe Zaffaroni (2013), apenas se limitou a enquadrar as suas observações, fundadas num conjunto de presos, aos quais tinha acesso, dada a imensa cifra oculta, obviamente, no marco spenceriano, que era o paradigma do seu tempo, diga-se de passagem.

É que Lombroso possui um lugar destacado na criminologia positivista, de acordo com García-Pablos de Molina (2006), tendo em vista a sua categoria do chamado delinquente nato, que seria uma subespécie ou subtipo humano (dentre os seres vivos superiores, porém sem alcançar o nível superior do homo sapiens), degenerado, atávico (produto da regressão, não da evolução das espécies), marcado por uma série de “estigmas” que lhe delatam e identificam e se transmitem por via hereditária.  

De acordo com seu pensamento, o delinquente padece de uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais (fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliares, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso frequente de tatuagens, notável insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso frequente de determinado jargão, altos índices de reincidência etc.) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, 2006).

O erro de Lombroso, no entanto, conforme nos ensina Zaffaroni (2013), consistiu em acreditar que essa feiura e a fisiognomia era a causa do delito, quando, na realidade, era causa da prisionização.

E nem se ingresse no pensamento de Ferri e de Garofalo, dado que o espaço não nos permite, mas apenas se enuncie com Zaffaroni (2013):

(…) O delinquente era, para Ferri, um agente infeccioso do corpo social do qual era preciso ser separado, com o que convertia os juízes em leucócitos sociais. (…) Para Garofalo, o “delito natural” seria a lesão do sentimento médio de piedade ou de justiça imperante em cada tempo e sociedade. Assim, ele construía um quadro de valores e subvalores lesionados no qual colocava os diferentes delitos.(…).

Por isso, conforme bem nos diz Zaffaroni (2013):

(…) Como se pode ver, o positivismo restaurou claramente a estrutura do discurso inquisitorial; a criminologia substituiu a demonologia e explicava a “etiologia” do crime; o direito penal mostrava seus “sintomas” ou “manifestações” da mesma forma que as antigas “bruxarias”; o direito processual explicava a forma de persegui-lo sem muitas travas à atuação policial (inclusive sem delito); a pena neutralizava a periculosidade (sem menção da culpabilidade) e a criminalística permitia reconhecer as marcas do mal (os caracteres do “criminoso nato”). Tudo isso voltava a ser um discurso com estrutura compacta, alimentado com os disparates do novo tempo histórico (…).

E, então, o quanto somos ainda influenciados pela criminologia positivista? Já parou para pensar? Afinal, qualquer semelhança com a realidade vigente não é mera coincidência. Por isso, é sempre bom refletir.


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Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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