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O problema da (in)justiça criminal negocial

O problema da (in)justiça criminal negocial

Em tempos recentes, com o avançar das investigações conduzidas no âmbito da “Operação Lava Jato” e o advento de novas “operações” de combate ao crime organizado e à corrupção, tem sido comum, nos círculos de debates jurídicos, mencionar o fenômeno do aumento dos espaços de consenso no processo penal, representado, sobretudo, pela figura da colaboração premiada.

Em tempos mais recentes ainda, com a apresentação de questionável projeto de lei denominado “anticrime”, a partir da gestação do chamado Plea Bargain no âmbito jurídico brasileiro, as discussões envolvendo o consenso no âmbito penal têm sido mais calorosas e frequentes.

A figura do consenso no processo penal brasileiro, contudo, não é nova. É possível vislumbrar mecanismos negociais, por exemplo, na Lei n. 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), que, além de prever a figura da suspensão condicional do processo, permitiu às partes optarem pela transação penal. Mas foi efetivamente com o advento da notória e rumorosa “Operação Lava Jato” e seus desdobramentos, calcados quase que exclusivamente na figura da colaboração premiada, que se fortaleceu a discussão relativa ao processo penal consensual.

Desde os primeiros acordos de colaboração premiada encetados no decorrer da “Operação Lava Jato”, principalmente sob a égide da Lei n. 12.850/2013, muito se tem discutido sobre a adequação do modelo de “defesa” consensual no interior do peculiar sistema jurídico nacional e, de que maneira, ele efetivamente merece acolhimento em nosso direito.

Para parcela de juristas, o modelo da colaboração premiada por nós adotado, por exemplo, não poderia ser aceito enquanto mecanismo legítimo de persecução criminal, além de utilizar-se da “traição” do investigado em detrimento de seus companheiros movida por interesses egoísticos derivados do afã de receber os “prêmios” oferecidos pelo Estado-Acusação, o procedimento seria verdadeira manipulação dos parâmetros punitivos em menoscabo ao poder-dever imposto às autoridades estatais em patrocinar a persecução penal contra todos aqueles que atentem contra a ordem jurídica (BITENCOURT, 2017).

Da mesma forma, alguns juristas apontam que a colaboração premiada, nos moldes como é firmada na realidade brasileira, pode transformar o processo penal numa simples formalidade a ser seguida, por meio do qual se busca, tão só, a confirmação dos relatos do “delator”, num quadro mental paranoico, em que as respostas vêm antes das perguntas (MELO; BROETO, 2017). Tudo em prejuízo da defesa dos “delatados”.

Mas, apesar disso, não só se afirmou a colaboração premiada como um mecanismo de defesa (consensual) posto à disposição do imputado/investigado, como novos espaços de consenso no processo penal têm sido gestados, o maior exemplo disso, como apontado, é o Plea Bargain.

Nessa figura – prevista no projeito “anticrime” –, distintamente do que deveria ser a colaboração premiada, há verdadeira barganha processual conduzida pelo titular do poder de acusar, o Ministério Público, diretamente com o sujeito passivo da acusação, seja ele investigado ou réu. Em linhas gerais, o Plea Bargain não pressupõe a colaboração do sujeito passivo (no sentido de incriminar terceiros como condição), mas prevê a possibilidade de renúncia do imputado/investigado à sua posição de resistência e, nessa medida, aceitação da acusação visando benefícios (VASCONCELOS, 2017, p. 24). Nesses casos, o que se busca é, desde logo, a superação do processo penal e, notadamente, a negociação da sanção penal do próprio barganhante diretamente com o acusador.

Para muitos – e o atual Ministro da Justiça é o mais fervoroso adepto dessa corrente –, essa ampliação dos espaços de consenso no processo penal, em especial por meio das duas figuras expostas (colaboração premiada e Plea Bargain), tende a trazer uma maior eficiência à persecução penal, como será um instrumento valioso de combate à corrupção e à “impunidade”. A realidade das coisas, entretanto, não se mostra concorde com os ardentes discursos propagados pelos defensores do eficientismo penal consubstanciado na premissa do consenso enquanto solução.

Urge, nessa esteira, tecer algumas considerações.

É preciso, antes de tudo, compreender que o processo penal, em seu caráter instrumental, tem como função primordial a proteção do cidadão diante do poder persecutório estatal, que, conquanto tenha a tarefa de perseguir e punir os criminosos, não pode se transformar em arbítrio e puro exercício da violência do Estado.

As garantias do processo penal, em especial o direito à defesa, ao contraditório e, mais ainda, à participação efetiva no processo, visam impedir a incriminação de inocentes (LOPES JUNIOR, 2013, p. 80), ainda que, para tanto, tenhamos que admitir a liberdade de culpados.

O processo penal, antes de ser um instrumento de aplicação do direito penal em face do criminoso, é um instrumento de proteção do cidadão inocente das investidas violentas do estado em seu estado de liberdade.

E nesse ponto a ampliação dos espaços de consenso pode ser um risco.

O primeiro problema, sem dúvida, reside na coercitividade natural da justiça criminal negociada. Diante da manutenção da resistência à acusação encampada pelo imputado/investigado, não tem sido incomum, por parte dos órgãos acusatórios, o oferecimento de denúncias infundadas, pedidos de prisão sem fundamentação idônea ou requerimento de medidas invasivas ilícitas com a pretensão de enfraquecer a posição defensiva e, no mais, servir de intimidação ao imputado/investigado.

Cria-se, assim, dentre os inocentes, réus confessos.

Ademais, como forma de forçar o “consenso”, busca-se, por meio do processo penal convencional, agravar o sancionamento do réu que não consente com a acusação, incutindo-lhe a noção de que a pena para sua não colaboração será, necessariamente, a maior sanção possível. E, nisso, não se pode inferir nenhuma escolha livre pelo consentimento, mas um falso consentimento.

Como nos alerta VASCONCELOS (2017, p. 40):

“[…] a necessidade de opção entre uma sanção reduzida (o que, na prática atual da colaboração premiada brasileira, representa penas em regimes de cumprimento profundamente mais benéficos) e a imposição de punição agravada fomenta a escolha pela cooperação/confissão, inclusive para imputados inocentes, que poderiam ser absolvidos ao final do processo em seu transcurso normal” (grifos no original).

Outro problema, também oriundo da expansão desenfreada da justiça consensual, está justamente no enfraquecimento da presunção de inocência e, sobretudo, a distribuição do ônus da prova.

Com a elevação da confissão barganhada ou da cooperação sem limites ao topo das “opções defensivas”, há verdadeira inversão da regra probatória, em que o imputado passa a ter o dever de comprovar a própria acusação que lhe pesa, afastando-se, por iniciativa própria, de sua posição presumida de inocência em razão do receio – imaginado – da atividade persecutória estatal. Igualmente, o Estado passa a ser dependente – como hoje ocorre – do consentimento e aderência do acusado à pretensão acusatória em razão de sua própria ineficiência probatória.

Isso, por evidente, sem mencionar – como já apontamos – o risco de tornar o processo penal, decorrente da colaboração/barganha, em mera “fraude de etiquetas” permeado pelos quadros paranoicos inquisitoriais.

Expansão da justiça negocial

Também é importante consignar o severo risco da expansão da justiça negocial no que atine à relação cliente-advogado. Nesse panorama de justiça negociada – como se tem e se pretende aperfeiçoar no Brasil – o patrono passaria a ser mero negociador de acordos de cooperação ou de confissões premiadas, renunciado a sua posição de defensor e de contraponto à acusação, porquanto, diante do quadro de expansão do poder punitivo, fica quase impossível, em algum momento da condução da defesa, não orientar a aderência aos mecanismos negociais. Mormente se vistos os riscos atuais do processo penal – como exposto – em que aquele que não “coopera” torna-se alvo de toda a violência sancionatória estatal.

Ou seja, nem tudo o que se mostra “eficiente”, pode ser visto como justo.


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A justiça negocial/consensual, nesse contexto, não pode e não deve ser vista como a panaceia de todos os males – e, inclusive, tem potência para gerar novos e deletérios malefícios ao processo penal. O uso dos mecanismos negociais, na forma com tem sido praxe em nossa rotina forense, antes de promover a justiça, autorizam a concretização da barbárie institucional, punindo inocentes e favorecendo culpados.

Embora não se possa apontar, prima facie, a ilegalidade da justiça negocial, tampouco a ilegitimidade dos mecanismos consensuais (como a colaboração premiada e a barganha); é evidente que o uso desmedido da justiça negocial, em sobreposição ao processo penal tradicional, além de não resolver o problema da corrupção sistêmica, culminará em graves violações às garantias processais do cidadão.

Os espaços de consenso no processo penal, como alerta BADARÓ (2017, p. 146), não podem se prestar a exclusão da legitimidade do poder de punir estatal – por meio do processo penal dialético – em homenagem a mecanismos de “verdade escolhida”, na busca de uma punição rápida.

Por isso mesmo, antes de se discutir acerca da adequação ou não dos mecanismos negociais no direito brasileiro (sobretudo acerca de sua justiça ou eficiência), é preciso estar ciente dos severos riscos que decorrem da primazia do “consenso” ante a presunção de inocência. É preciso conter eventuais abusos em busca da conformação constitucional dos espaços de consenso.


REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique. A colaboração premiada: meio de prova, meio de obtenção de prova ou um novo modelo de justiça penal?. In: MOURA, Maria Thereza de Assis; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (coord.). Colaboração Premiada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 127-149.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Delação premiada é favor legal, mas antiético. In: Revista Consultor Jurídico, jun. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 abril 2018.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

MELO, Valber; BROETO, Filipe Maia. Homologação do acordo de delação como causa (i)legal de (pre)julgamento. In: Revista Consultor Jurídico, set. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 08 abril 2019.

VASCONCELOS, Vinícius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.


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