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Inquérito policial e o Tribunal do Júri

Por Daniel Kessler de Oliveira

Não é de hoje que a discussão acerca do inquérito policial consiste em uma das principais problemáticas do estudo moderno do processo penal, que visa a uma maior aproximação deste ao modelo democrático constitucional existente no país desde 1988.

A investigação preliminar, em especial o Inquérito Policial,  serve para apurar os indícios para que seja deflagrada a ação penal e, por isso, obviamente, acaba por ingressar no processo, o que faz com que eventuais ilegalidades nesta fase pré-processual, adentrem o processo, contaminando o julgamento, ainda que vozes roucas na doutrina nacional bradem que as nulidades do inquérito não contaminam o processo.

Daí porque, hoje, talvez o principal problema vivenciado nesta temática seja para além da forma do inquérito, não se reduzindo às regras de sua instauração e procedimento, mas, principalmente, a valoração que lhe é concedida no âmbito probatório.

Não se desconhece a relevância do inquérito policial, tampouco sua imprescindibilidade na solução de casos penais, o que se crítica é sua supervalorização, de modo que a “prova” policial, por muitas vezes, prepondere sobre a prova judicial, em uma total deformação do modelo processual definido constitucionalmente.

O legislador já definiu de forma expressa que o julgador não poderá decidir exclusivamente com base nos elementos colhidos no inquérito policial, consoante a redação do art. 155 do Código de Processo Penal.

Todavia, a cultura jurídica arraigada em matrizes autoritárias e presa em grilhões inquisitoriais que não lhe permitem a ruptura com determinadas práticas, segue a ignorar tais dispositivos. Ou, quando não ignoram a sua existência, ignoram o seu sentido. De modo que baste uma pincelada argumentativa, uma menção a trecho da prova judicializada, para imunizar a decisão alicerçada nas bases inquisitoriais do inquérito policial.

Isto é problemático em todo e qualquer processo penal, por relativizar garantias fundamentais e por tornar o processo um jogo jogado, um palco com roteiro estabelecido, no qual os atores são reduzidos a meros figurantes.

O trato em igualdade de condições, dos elementos colhidos na fase do inquérito policial para com os elementos colhidos sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, no âmbito de uma situação processual penal, é ilegal e inconstitucional. Agora, a prevalência dos elementos investigatórios, além de tudo isto, é imoral e deplorável por parte de atores judiciais, que, independente de suas funções, devem estar comprometidos com a defesa da democracia.

Todo este problema ganha contornos ainda mais dramáticos, quando se trata de julgamentos perante o júri popular.

Imaginar que o jurado possa ter a devida percepção acerca do que é prova produzida na polícia e o que é produzido em juízo é exigir um conhecimento técnico demasiado, de alguém que ali está para julgar por outros valores, que não os técnico-jurídicos.

Aqui, não trataremos de uma análise mais profunda sobre o tema do Tribunal do Júri, até mesmo pela escassez de espaço, mas, tão somente, buscaremos a análise dos elementos do inquérito na captura psíquica do jurado, na formação de seu convencimento.

Enquanto o Inquérito Policial compor os autos dos processos, ele será utilizado pelos atores judiciais e ele formará o convencimento de julgadores, togados e leigos.

A diferença é que o julgador togado terá de fundamentar a sua decisão e não poderá fazê-lo, exclusivamente, com base na prova policial. Já, o jurado, não necessita fundamentar, de modo que nunca saberemos ao certo o que o levou a decidir de tal maneira.

Então, quando a discussão do caso se sustentar, como muito acontece, em contradições de versões colhidas na fase policial e em juízo, ao fim e ao cabo estará se colocando o jurado para decidir se acredita ou não na autoridade policial.

E o debate, muitas vezes, ruma para uma crítica a postura policial, quando um dos principais problemas desta fase é, também, a estrutura policial.

Ou seja, antes de se analisar eventual pressão por parte dos policiais ou depoimentos que não traduzem a realidade do que foi dito, devemos ter em mente que a estrutura de nossas delegacias, por si só, não permitem a colheita de uma prova devida e séria.

Isto porque, na fase policial não há questionamentos, há um mero relato fático de uma pessoa para uma autoridade. Assim, a testemunha ou vítima narra um fato que viu para alguém que vai ouvir e reduzir a termo aquilo que compreendeu.

Conseguimos enxergar o quanto se perde neste caminho? Ou seja, a testemunha presenciou um fato, parte daquilo foi apreendido por sua memória, parte disto, ela consegue narrar. Esta narrativa é absorvida pela autoridade policial, que empresta a ela sua interpretação e coloca no papel parte do que ouviu e entendeu e, com isto, temos a “prova” policial.

Em juízo, o depoimento, na maioria das vezes é gravado, o que permite capturar trejeitos, pausas na fala e entonações, o que concede significados muito distintos a determinadas frases. Ademais, em juízo, a testemunha é questionado sobre suas afirmações, evitando contradições e impedindo frases desconectadas.

Assim, ainda que pela estrutura, a prova judiciária é mais crível, por ser melhor produzida.

No entanto, muitos atores judiciais desprezam isto e se valem da prova que melhor lhes serve, prevalecendo-se da ingenuidade do conselho de sentença e apostando na terrorização do júri, na velha polarização do bem e do mal, colocando no jurado a noção de que condenar é defender a sociedade, absolver é estimular a impunidade e se colocar ao lado de quem comete crimes, o que torna o julgamento algo inócuo, diante da pré-disposição condenatória.

Seria a velha inquisitoriedade, o primado das hipóteses sobre os fatos (CORDERO, 2000), onde o julgador já convencido apenas buscaria elementos para justificar a sua decisão, na velha prática do se decidir para depois se fundamentar, pois “as premissas, não obstante o seu nome, são frequentemente postas depois. O teto, em matéria jurídica, pode assim construir-se antes das paredes” (CALAMANDREI, 1940, p. 145).

O velho discurso acusatório de defensor da sociedade, coloca o réu, ainda presumidamente inocente, em uma condição excluída do corpo social, em uma situação de inimigo da sociedade, sociedade esta personificada nos sete membros do conselho de sentença. E qual será a chance de que se tenha efetivamente um julgamento?

Há muito se sabe que nosso júri necessita ser repensado e reformulado para que se aproxime de um ideal de justiça, para que seja palco de um efetivo julgamento e não de um ritual protocolar, de gozo social pelo prazer da punição.

O júri, por ser uma escolha constitucional deve vir comprometido com as bases constitucionais que tratam de princípios e valores que devem guiar a persecução penal e o processo penal, em si.

Dessa forma, o valor do inquérito policial urge ser repensado na legislação e, em especial, na cultura jurídica de nossos atores judiciais e, no caso do júri, a própria inclusão deste nos autos, necessita ser avaliada sobre as bases constitucionais do processo penal.


REFERÊNCIAS

CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, Vistos, por Nós, os Advogados. Trad. Ary dos Santos. Lisboa: Livraria Clássica, 1940.

CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fe de Bogotá: Editorial Temis, 2000.

_Colunistas-DanielKessler

Daniel Kessler de Oliveira

Mestre em Ciências Criminais. Advogado.

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