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Internação ou tratamento ambulatorial?

Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou tratamento ambulatorial? Qual é a medida de segurança que deve ser aplicada aos inimputáveis e aos semi-imputáveis? E como o Código Penal trata a matéria?

Bem… Como se sabe, os inimputáveis (ao contrário dos “semi-imputáveis”) não praticam crime no Brasil, justamente por faltar-lhes a imputabilidade, que é um dos elementos da culpabilidade. Logo, sem culpabilidade, não há crime (para a teoria tripartite).

Assim, se um inimputável se envolver num fato típico e ilícito, não ser-lhe-á aplicada pena e tampouco será proferida sentença penal condenatória. Ao contrário: ele será absolvido impropriamente e submetido a uma medida de segurança, que poderá ser de internação ou tratamento ambulatorial.  

Com os “semi-imputáveis” a situação é diversa. Isso porque, no caso deles, a culpabilidade é existente, porém diminuída (por esse motivo muitos criticam a expressão “semi-imputabilidade”, defendendo a terminologia “culpabilidade diminuída”), de modo que eles praticam crime (por existir culpabilidade, sem embargo de reduzida) e, consectariamente, estão sujeitos a uma sentença penal condenatória.

Vale dizer: na hipótese de semi-imputabilidade, não haverá absolvição imprópria, senão condenação criminal a uma pena, que, todavia, deverá ser diminuída (em razão da culpabilidade diminuída) ou ser substituída (a pena reduzida) por medida de segurança.

Nesse particular, insta destacar que ao “semi-imputável” não é permitida a aplicação cumulativa de pena e medida de segurança, como se admitia até a reforma do Código Penal de 1984, visto que não mais vigora o sistema do duplo binário, senão o sistema vicariante (ou monista). A propósito, o escólio de Bitencourt (2015, p. 859): “e o semi-imputável, o chamado ‘fronteiriço’, sofrerá pena ou medida de segurança, isto é, ou uma ou outra, nunca as duas.”

E continua (2015, p. 482): “na hipótese dos ‘fronteiriços’, isto é, de culpabilidade diminuída (semi-imputabilidade), é obrigatória, no caso de condenação, a imposição de pena, reduzida, para, somente num segundo momento, se comprovadamente necessária, ser substituída por medida de segurança (princípio vicariante).”

Igualmente, Zaffaroni e Pierangeli (2013, p. 762-763) aduzem que as condições das medidas de segurança destinadas aos inimputáveis se estendem aos “semi-imputáveis”, nos casos de culpabilidade diminuída, prevista no parágrafo único do artigo 26 do CP, “quando o juiz entende que o condenado necessita de um especial tratamento curativo, hipótese em que a ‘medida’ pode substituir a pena diminuída. […] Veja-se que, neste caso, impõe-se a medida, em condições iguais às da inimputabilidade, mas a um agente que é culpável de crime.”

O Código Penal, em seu artigo 26, dispõe o seguinte:

Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. 

Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Inobstante, a controvérsia e os excessos da lei – objetos de crítica desta Coluna –  residem, justamente, na espécie de medida de segurança a ser aplicada: se internação ou tratamento ambulatorial, independentemente de se tratar de agente inimputável ou de culpabilidade reduzida.

Pois bem. O que determina se o juízo deve aplicar internação ou tratamento ambulatorial não é a inimputabilidade ou a “semi-imputabilidade” do sujeito. O artigo 97 do CP disciplina a matéria: “Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.”

Ou seja, numa leitura meramente gramatical, o entendimento que se colhe é o seguinte: A) se o delito for punido com reclusão, dever-se-á determinar a internação do sujeito; B) se punido com detenção, ele deverá ser submetido a tratamento ambulatorial (sendo possível a conversão da medida em internação, nos termos do artigo 97, §4º, do CP).

Contudo, o tratamento conferido pela legislação penal é manifestamente desproporcional.

Inicialmente, na fixação de medida de segurança, o magistrado não deve se vincular à gravidade do delito perpetrado, mas sim à periculosidade do agente, observando-se sempre os princípios da adequação, razoabilidade e proporcionalidade da medida.

O problema é que o disposto no artigo 97 do CP acaba por consagrar situações absurdamente desproporcionais e constrangedoras. Ora: nem todos os crimes punidos com reclusão se revestem de tamanha gravidade a ponto de justificarem a internação obrigatória e imediata do agente, que perdurará por tempo indeterminado, e por lapso mínimo de um a três anos (art. 97, §1º, do CP).

Por exemplo, um sujeito inimputável que tenha perpetrado um fato previsto como furto (delito punido com reclusão, cuja pena é de 1 a 4 anos) pode, a depender da situação, ser perfeitamente “tratado” mediante tratamento ambulatorial, com acompanhamento psiquiátrico periódico e com a ingestão de medicamentos, porém, sem necessidade de internação, que não se mostraria indicada para fins “curativos”.

Veja-se que, nesta situação, o rigor da lei obrigaria a internação do agente, que poderia perdurar por prazo máximo indefinido, tão somente por ser o delito punido com reclusão, quando, na verdade, um tratamento ambulatorial bastaria para fazer cessar a “periculosidade”.

No âmbito da jurisprudência, há divergência sobre a matéria. Interessa destacar, todavia, o entendimento da Egrégia Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na senda de que os artigos 96 e 97 do CP não devem ser aplicados de forma isolada, como se consagrassem uma regra fechada, devendo-se analisar qual a medida de segurança melhor se ajustaria ao tratamento que o sujeito necessita.

Noutros termos: a depender do caso concreto, mesmo que o delito seja punido com reclusão, poderá se admitir a estipulação da medida de segurança de tratamento ambulatorial, observada a periculosidade do agente e desde que a medida seja mais adequada para fins “curativos/terapêuticos”.

Inclusive, a Sexta Turma do Tribunal da Cidadania já concedeu ordem de habeas corpus de ofício para fazer cessar flagrante constrangimento ilegal, consistente na aplicação da medida de internação sem a existência de motivos plausíveis para tanto, com base exclusivamente na circunstância da infração penal ser punida com reclusão. Pela pertinência, segue a ementa:  

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. DIREITO PENAL. ART. 97 DO CP. INIMPUTÁVEL. MEDIDA DE SEGURANÇA. INTERNAÇÃO. CONVERSÃO PARA TRATAMENTO AMBULATORIAL. RECOMENDAÇÃO DO LAUDO MÉDICO. POSSIBILIDADE.[...] 2. Na fixação da medida de segurança, por não se vincular à gravidade do delito perpetrado, mas à periculosidade do agente, é cabível ao magistrado a opção por tratamento mais apropriado ao inimputável, independentemente de o fato ser punível com reclusão ou detenção, em homenagem aos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade. Precedentes.[...] 3. Ante a ausência de fundamentos para a fixação do regime de internação e tendo o laudo pericial recomendado o tratamento ambulatorial, evidente o constrangimento ilegal.4. Writ não conhecido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício, para substituir a internação por tratamento ambulatorial, mediante condições judiciais a serem impostas pelo Juiz da Execução Penal, tendo em vista o trânsito em julgado da ação. (HC 230.842/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 14/06/2016, DJe 27/06/2016).

Assim, considerando que o Direito não é uma ciência exata, com fórmulas prontas e prévias que resolveriam todas as situações, com o escopo de evitar desproporcionalidades e constrangimentos atentatórios à dignidade humana e ao direito de liberdade, deve-se realizar uma interpretação em conformidade à Constituição Federal, no que tange ao disposto no artigo 97 do Código Penal, pautada nos princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de se pagar um preço muito alto – ao Estado (em virtude das despesas inerentes) e, principalmente (e com certeza), ao cidadão-constrangido, objeto da medida de segurança.

Um feliz 2018 a todos e até semana que vem!


REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. – 21. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. – 10. ed rev., atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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